quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

 

 

O vento, o rio e o tempo

             Será que o vento é como o rio, que passa num passar sem fim? Ou ele passa e volta, fazendo piruetas no céu? Será que o vento é implacável como o tempo e o rio, que passam, passam, sem piedade, e nunca voltam? Que passe o vento, que passe o rio, mas o tempo, que passe pela sua vontade, não pela minha.

sábado, 23 de dezembro de 2023

 

Apego

Eu sempre fui apegado às coisas. Primeiro foi a chupeta. Chupava aquilo como se fosse um peito leitoso. O tempo foi passando e eu não largava o vício. Depois foi a bola que, mesmo depois de furada, ainda levou bons pontapés. Depois os soldadinhos de chumbo, as figurinhas, os patins, as bicicletas, as luvas de boxe.

           Quando cresci fui apegado às mulheres, ao dinheiro, carros, viagens, orgias e boa comida. Destruí muita gente para conquistar tudo isso, e agora, luto desesperado para me desapegar de um câncer que se apossou de mim.

sábado, 16 de dezembro de 2023

 

O Braço

Foi uma brusca freada, e eu, da varanda, de rosto franzido e olhos fechados, esperei por intermináveis segundos até que o carro parasse, e justamente nessa hora, ouvi um barulho seco, compacto, vindo do telhado, como se um saco de farinha tivesse sido jogado ali. Olhei para cima e do lugar onde me encontrava vi apenas alguns dedos transpondo a quina da calha. Peguei rapidamente a escada e subi, na tentativa de salvar aquela criatura, porém, em cima do telhado só havia um braço acompanhando aqueles dedos inertes.

          Desesperado, olhei para a rua e gritei, chamando as pessoas que pareciam procurar algo ao redor de um corpo já coberto com folhas de jornal.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 

Capa de cordeiro

            Além de sangue, sistema vascular, músculos estriados, plexo braquial, artérias, pleura diafragmática, brônquio principal, pericárdio fibroso e grandes vasos, o coração guarda também a capacidade de nos iludir com relação ao amor, pois, o amor é traiçoeiro; astuto, falso, matreiro. Esconde a pele do lobo numa capa de cordeiro.

domingo, 10 de dezembro de 2023

 

O filme

Imagino-me em um filme, eu o ator, o criador, o diretor. Fácil viver lá dentro. Lá eu não tenho medo, eu represento o medo. Eu posso estar andando nos becos mais sórdidos e, de repente, ser hostilizado por um grupo de viciados. Minha reação pode ser infinita: posso me impor, lutar até a morte, posso usar como arma a retórica, depende do texto. Posso sair dali sem que ninguém me veja, posso até morrer que nada vai mudar. Eu não vou morrer mesmo! No fim eu troco de roupa e vou-me embora.

          Se não existisse a morte nós viveríamos eternamente dentro de um filme, sem medo, sem angústia por sabermos que ela não estaria nos espreitando, com aquela sua roupa preta e a foice em uma das mãos. Mas sejamos sinceros: o nosso tédio seria bem maior.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

 

As mascaras

“As máscaras caíram. Ninguém mais consegue se disfarçar. Cada um é o que é e nunca mais agirá de forma conveniente com suas mentiras.”

Isso seria o princípio de algo verdadeiro que jamais acontecerá. As máscaras jamais cairão, e as pessoas, assustadas, sempre as usarão como uma forma de se protegerem dos outros e de si próprias. Eles não tem coragem de se aceitar como verdadeiramente são, e as máscaras os ajudam a ser como os outros, que não são o que são.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

 

Resistência

Ela já se foi, só eu permaneço nesta sala imensa, irritado com o eco de pequenos barulhos que faço ao movimentar a perna para evitar dormência. Estou sentado no chão a contemplar algumas contas do colar que partiu quando eu, na hora da agressão, tentava me defender. São falsas contas, como já é falso, há muito tempo, o nosso relacionamento.

           Eu já não me importo com as suas indiscretas e infrutíferas tentativas de envolver-se com a juventude, porém, a juventude tenta, discretamente, envolver-se comigo. Isso faz com que ela adquira, nas suas expressões e atitudes, um desejo de esmagar o mundo, uma necessidade de destruir o belo, uma fúria incontida, que hoje culminou numa cena patética, fazendo com que os convidados, inclusive o pivô da discussão, que eu espero rever em breve, saíssem discretamente, deixando-me aqui sentado, tentando gastar, até a última gota, a resistência inata do ser humano de tomar atitude quando o assunto é a separação.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

 

Carência

Um tiro certeiro acertou um certo sujeito chamado João. João caiu de bunda no chão, mas o tiro que levou não acertou sua bunda, e sim, sua mão. O tombo foi de susto e João, ao se levantar, pegou a mão com a outra e fez uma careta. Como não havia ninguém olhando, parou de fazer careta e levou sua mão para o hospital.

Só faltava mancar de tanta carência afetiva. Sua mãe não estava lá para dar-lhe um beijinho e afagar-lhe os cabelos. Seu pai não estava lá para enfiar-lhe a mão a cara, dizendo que homens não choram. Sua mulher não estava lá para fazer um escândalo e desmaiar ao se deparar com aquela mão ensanguentada.

           E lá ia João, pensando... Pensando e mancando, mancando e chorando, chorando e s’amando, s’amando e sarando, sarando e se lembrando de que sarado a vida é outra, mais dura, mais difícil de se levar, mais difícil de aguentarrrrrrrrrrrrrgh.

domingo, 26 de novembro de 2023

 

A responsabilidade

A responsabilidade é uma merda. É claro que todos nós devemos estar atentos para não abusarmos da falta dela. Tirando as pessoas que se escondem sob uma capa de responsabilidade para executar as maiores falcatruas, a responsabilidade é castradora. Quanto mais eficiente, quanto mais centrado em coisas inúteis, mais responsabilidade você adquire, e isto não o deixa se movimentar.

          Para a maioria das pessoas a responsabilidade é o céu e a falta dela é o inferno. Já virou lugar-comum dizer que o inferno é melhor do que o céu, mas, Deus que me perdoe: viva a falta de responsabilidade!

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

 

Desconforto

            Na parede, amarelado sob uma moldura rota, o meu retrato, quando jovem, inspira mais respeito do que esse caco na cadeira de balanço, a forçar a perna num movimento ritmado, como se amenizando a eterna estagnação existente na casa. Até a mosca, que entrou fazendo três ou quatro visitas de inspeção em pontos distintos da sala preferiu o caco ao retrato emoldurado, causando-me um profundo desconforto.

sábado, 18 de novembro de 2023

 

Os velórios

            Os velórios me deprimiam. O defuntos, nem pensar! Não os encaravam. Eles eram sóbrios, superiores. Sabiam mais do inimaginável do que eu poderia imaginar. Hoje eu me dou com eles. Meus amigos estão partindo e a cada despedida eu me sinto mais à vontade. Passei a me encarar ali. Logo será a minha vez, e sempre me pego arrumando o colarinho de um ou outro, como se cuidando da minha aparência para partir com dignidade.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

 

Máquina enferrujada

É... O mundo vai girando e a gente girando junto. É uma imensidão desconcertante, assustadora o universo, e se a gente estiver sem dinheiro para pagar as contas, esse mundo, essa imensidão perde por completo a importância. A gente, na maioria das vezes, aqui nesse mundinho insignificante, sem dinheiro para pagar as contas não se assusta com a imensidão do universo.

            A máquina está enferrujada, não funciona, e os bichos da ferrugem atacam, atacam, e você lá, deitado com as mãos apoiando a cabeça sobre o almofadão, olhando para a imensidão do universo, sem ao menos perceber que ali existe um universo para ser observado.

sábado, 11 de novembro de 2023

 

                                                        Descendência           

            Eu não tenho descendência de rio no quintal. Tenho de área de serviço. Eu não tenho descendência de árvore. Tenho de cama colorida. Eu não tenho descendência de concurso de cuspe, concurso de mijo, nem de pula toco. Tenho de Nintendo. Minha descendência é concreta, não abstrata.

domingo, 5 de novembro de 2023

 

O carregador oficial

O bêbado tinha um carregador. O carregador era sério, devia ser seu amigo ou parente. O bêbado gesticulava ao falar. Ninguém entendia seus gestos, nem suas palavras. O carregador era paciente e parece que cumpria uma obrigação. Eu não sabia se aquele era o carregador oficial do bêbado, mas ele estava desempenhando aquela função com muito esmero. Na sacada, a mulher recebeu o bêbado e o levou para dentro, como se leva algo difícil de carregar.

 O carregador foi-se embora. A mulher do bêbado deve ser o carregador oficial.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

 

Dura Realidade

            Tomado por uma grande necessidade de liberdade, saí, atravessei a cidade e me situei num campo florido, até que um enxame de abelhas levou-me para a praia, deixando-me a contemplar pernas roliças, seios firmes e bem delineados de lindas mulheres, e no momento em que essas mulheres começaram a tirar os seus biquínis, tentando,  delicadamente, esconder o sexo, apesar de seus olhares insinuantes, e eu já sentindo um princípio de ereção, ouvi o barulho da portinha se abrindo e vi a panela com um caldo marrom sendo jogada cárcere adentro, trazendo-me de volta para a minha dura realidade.

domingo, 29 de outubro de 2023

 

Show aéreo

Era um show acrobático aéreo. Os aviões faziam barulho, e eu, amedrontado, segurava a barra da saia da minha mãe. O show dos urubus era bem melhor. Eu costumava me deitar na grama para voar com eles. Eles bailavam nas alturas sem bater asas. Pareciam estrelinhas pretas no céu azul, e quanto mais altos, menores ficavam. Eu os admirava, até o dia que alguém perguntou o que eu seria quando crescesse. Eu respondi urubu. Depois, não aguentei a pressão. Também não expliquei nada.

Agora ali, olhando os aviões, segurando a barra da saia da minha mãe, eu queria estar vendo urubus. Urubus não fazem barulho, nem caem.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

 

Dilúvio

A maioria de nós quer chorar e não consegue. Se acontecesse de todos chorarem ao mesmo temo, as lágrimas inundariam o mundo, e talvez um grande momento de sensibilidade superasse os momentos de aflição em que vivemos. Eu não consigo chorar, portanto, estou predestinado à aflição, mas não fico aflito aqui, quieto no meu canto. Tento compartilhar a minha aflição com todas as pessoas que me cercam. 

            Elas que me perdoem!

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

 

Velório

Quanto mais os anos passam, mais mortos você visita, e é claro, a gente sempre torce para não ser visitado. Quando eu estou lá, no velório, visitando um desses mortos, sinto que ele apresenta-se de uma forma muito esnobe, ali deitado, não participando de nada ao seu redor. Às vezes eu sinto que eles levam certa vantagem sobre as pessoas que ali estão, pois, já têm a experiência da morte e as pessoas não. Eles já podem estar envolvidos com outras maneiras de ser, ou com o nada absoluto, com o descanso total, com o descanso que não tem graça.  De certa forma eu prefiro estar ali vivo, adquirindo mais experiência em vida, não sei para quê.

            Esta é a minha vantagem.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

 

Dura realidade

A musica que eu ouvi era antiga, muito antiga, e me remeteu ao passado. Na época em que eu ouvia essa música eu era muito feliz e, imediatamente, senti toda aquela felicidade.

           Essa sensação agradável, como se a vida voltasse a ser o que era, durou muito pouco, e apesar de ter me remetido a um maravilhoso lugar do passado, não foi capaz de me segurar lá, devolvendo-me para o poço escuro e silencioso onde eu me encontrava antes de ouvi-la.

domingo, 15 de outubro de 2023

 

Del

            Quando criança eu não queria ser visto, e sempre que isso acontecia, tapava os olhos com as mãos. Assim protegido ninguém me via. Ao tirar as mãos, tudo voltava ao que era, e no tempo em que eu me ausentava, minha imaginação ia para bem distante. O sentimento de liberdade ocasionado pela minha ausência me proporcionava um grande prazer. Essa era a tecla Del da minha infância.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

 

O palhaço

O circo está armado. A trapezista, com as mãos banhadas em talco, espera ansiosa pelo início do espetáculo. O palhaço retoca a maquiagem. Já colocou sua gravata. Daqui a pouco enfrentará um trânsito infernal até o picadeiro. A mulher da corda prepara as crianças para a escola. O palhaço, em breve entrará na jaula dos leões. Ele ajuda o domador, e, certamente, tomará algumas chicotadas.

            Mais um dia se inicia. Este é um retrato do nosso povo...

sábado, 7 de outubro de 2023

 

Uma tela em branco

Uma tela em branco no computador, em determinados momentos, é de matar qualquer um de pavor. É como uma multidão atenta, interrogativa, esperando você falar, e você olhando apavorado sem saber o que dizer. Uma tela em branco, no computador, só pode ser comparada a uma tela de pintura em branco, esperando as primeiras pinceladas. As duas causam o mesmo sofrimento. Uma tela em branco no computador não passa de uma tela em branco, e o computador não passa de uma máquina que, sem os nossos comandos, jamais conseguirá se movimentar.

A tela está lá, vazia, esperando que você coloque o que quiser. Que seja um “puta que os pariu” ou a descrição de uma flor. Você pode falar mal de alguém, falar de coisas boas ou ruins, pode mentir descaradamente, tentar escrever em toda a página, como estou tentando fazendo agora, ou pode falar tudo com apenas três palavras. Quando você pensa em falar tudo com apenas três palavras, isto vira um desafio, uma obsessão, e você começa a tentar imaginar quais palavras seriam essas três, até descobrir que poderia ser: “Estou com fome”, e sair correndo para comer um sanduíche.

Voltei!

          Uma tela de computador em branco assusta, deprime, desafia. Pode causar grande alegria quando as ideias começam a brotar ou uma grande frustração quando nada acontece.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

 

A fragilidade do desejo

Ele era estagiário, ela, chefe de setor. Ela procurava, ele ardia. Ele desejou aquele corpo de sereia madura, ela, aventura. No motel ele desfez-se das vestes e expôs sua nudez sem constrangimento. Ela se despiu em parte.

Ele, da piscina, passou a observá-la: canelas finas, ancas largas, diferentes das de sua preferência nas revistas eróticas. Sob o sutiã transparente, os seios, de aréolas e bicos escuros, tentavam escapar. Aquele modelo, de qualidade dúbia, não era o de sua preferência.

            Ele mergulhou, eternizando os segundos. Ela tentou, em vão, solidificar o vento. Ele se desculpou. Ela pagou a conta. Ele voltou para as suas revistas.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

 

Mundo maravilhoso

O mundo é uma maravilha. Tirando as coisas que atrapalham, é uma maravilha. As árvores, os pássaros, todos os animais, enfim, tudo é maravilhoso. Uma cidade bem planejada, uma boa qualidade do ar para todos, educação e qualidade de vida para que os ânimos não se exaltem, boas condições de saúde, muita confraternização e amizade entre todos é que fazem desse mundo uma maravilha.

Às vezes alguém desanima, acha que o mundo não é tão maravilhoso como todos acham. Esses são os pessimistas que, só porque algumas árvores são cortadas, algumas fábricas emitem gazes tóxicos na atmosfera, alguns pássaros e abelhas morrem intoxicados, algumas escolas não cumprem o seu papel de ensinar e educar, e alguns hospitais não dão o mínimo de condições necessárias para que um cidadão tenha um tratamento adequado, não vêm que o mundo é maravilhoso.

        Quem não vê isso são os alienados que, se gastassem um pouco do seu tempo informando-se, atualizando-se, assistindo a um bom programa de televisão aos domingos, entenderiam que realmente o mundo é maravilhoso.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

 

Estamos em obra

            Estamos em obra, eu e a poesia. Escrevemos em um dos lados da cabeça (sem pena) para que a dispersão não se intrometa. No quarto escuro, só o barulho do ventilador de teto e as ideias indo e vindo como transeuntes apressados, e apesar de toda essa movimentação, não consigo coerência para concluir com dignidade os meus devaneios.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Pobre

            Uma pessoa nasce pobre. Por nascer pobre não se alimenta direito. Não se alimentando direito, não consegue se concentrar nos estudos como uma pessoa que se alimenta direito. Não estudando não terá uma profissão decente que lhe garanta a sobrevivência. Consequentemente continuará pobre. Provavelmente terá filhos que nascerão pobres, não se alimentarão direito; talvez nem concluam o Ensino Fundamental, e fatalmente terão outros filhos.

       Enquanto isto os artistas se autopromovem, os empresários disputam, os políticos mentem, os líderes religiosos induzem, as revistas manipulam, os dirigentes se dirigem, a sociedade se cala, os padres tomam chá e os pobres limpam a cidade dos restos jogados nas latas de lixo.

 

domingo, 17 de setembro de 2023

 

A cassiterita

A cassiterita é um nome que costuma aparecer na cabeça da gente sem que se saiba sequer o seu formato, a sua cor, sua nomenclatura. É claro que depois se descobre que é um mineral óxido de estanho (SnO2), geralmente opaca, sendo translúcida quando em pequenos cristais, com cor púrpura, preta, castanho-avermelhada ou amarela. Cristaliza no sistema tetragonal, com hábito prismático ou piramidal.

            Mas quando a gente se assusta, está com isto na cabeça, porque a cabeça, às vezes fica vazia, e vai dando aquele branco, e não vai saindo nada, e vai dando uma raiva porque todo mundo deveria ter boas ideias o tempo todo, e não somente quando está fazendo uma caminhada numa trilha, sem caneta e sem papel, e dá vontade de escrever com um graveto numa folha de árvore. Aí você não escreve e já em casa tenta desesperado lembrar-se do que era, pois aquela ideia era excelente e agora, no conforto do lar nada acontece além da palavra “cassiterita”.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023


 Filosofia barata

            O pingo da chuva, logo não existe como pingo, a não ser que a gente tente, sem êxito, acompanha-lo pela enxurrada. O pingo da chuva é uma ilusão, uma confusão. Não entendo mais nada. Vou abrir o guarda-chuva.

domingo, 10 de setembro de 2023


 O lobo encantado

É, parece até mentira, mas um dia chegou uma fada, não se sabe de onde, e encantou o lobo. Ele não sentiu nada quando a fada bateu a varinha nas suas costas, nem a ouviu dizer que ele seria bom e generoso para com os outros animais. Apenas viu algumas estrelinhas coloridas à sua volta e estranhou a sua reação diante da fada ali ao seu lado. Em outras circunstâncias ele teria avançado e talvez resolvido, ali mesmo, o seu problema de alimentação do dia.

Saiu andando calmamente e, ao ver um coelho, não sentiu vontade de caçá-lo. Foi em sua direção, e o coelho, de tanto medo, ficou paralisado, sem forças para correr. Então o lobo disse: 

- Aonde vais meu bom coelhinho?

Os outros animais assistiam a tudo e não acreditavam no que viam.

O coelho abaixou a cabeça e disse com voz baixa:

-Vou ao Sítio do Lago Claro, comer cenouras.

-Você não deve fazer isto, meu filho - disse o lobo - O Sr. Freitas trabalhou muito para plantar as cenouras. Você não pode chegar lá, assim sem mais nem menos, e comer as suas cenouras. Coma essas que estão à sua frente, e comporte-se, meu querido.

            Neste momento, apareceu na frente do coelho uma tigela com lindas cenouras, e o coelho foi logo experimentando uma para ver se realmente era verdadeira.

Uma ovelha disse agressiva:

-Lobo, este pasto está uma porcaria. Olha o tamanho do capim! - e logo o capim cresceu sem que o lobo precisasse dizer uma palavra. A galinha queria milho e minhoca, e logo foi atendida. Até o Sr. Freitas, aproveitando da generosidade do lobo, pediu uma casa nova para o sítio, com antena parabólica e piscina.

O tempo foi passando e os animais foram perdendo completamente o medo que sentiam do lobo, e passaram a agredi-lo. Se em algum lugar do pasto a grama amarelasse, um pouquinho que fosse, uma ovelha ia lá, pegava o lobo pela orelha e o trazia para mostrar, arrastando o seu focinho na grama para que ele, imediatamente, a fizesse ficar verde novamente. Quando a TV saía do ar, mesmo que o problema fosse da rede de transmissão, lá ia o Sr. Freitas com o seu chicote - coisa que o lobo mesmo fizera aparecer na sua mão - procurar o lobo para consertar. Ninguém demonstrava gratidão pelos serviços prestados pelo lobo, e se acostumaram tanto com as benesses proporcionadas pelo lobo que ele já nem tinha tempo de dormir.

Quando alguns animais, os mais espertos, começaram a usar o lobo para conseguir vantagens sobre os outros, provocando uma brigalhada sem precedentes na história do Sítio do Lago Claro, a fada voltou a aparecer. Bateu novamente a varinha nas costas do lobo e disse, sem que ele ouvisse:

-Infelizmente eu errei. Você vai voltar a ser mau para que os outros animais voltem a serem bons.

O lobo não sentiu nada e só viu umas estrelinhas coloridas à sua volta.
Assim que as estrelinhas sumiram, ele avançou sobre a fada, que desapareceu como fumaça.

Então ele, sorrateiro, tomou os rumos do sítio, escondendo-se entre as folhagens para não ser visto. Estava com muita fome e não se lembrava de nada do que havia acontecido.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

 

Devaneio

Ele ficou olhando para a tela do computador por alguns minutos, e sem o que dizer, escreveu sobre um cachorro manco que não conseguia urinar no poste e foi inchando, inchando, até estourar de tanta urina. Depois escreveu sobre a calça no varal, balançando de um lado para o outro, e o gatinho branco tentando alcançá-la, até conseguir e ficar com a pata presa, desesperado, tentando se desvencilhar, e o vento batendo, e o gato lá embaixo, tentando, tentando. Escreveu sobre a mulher que todos os dias passava pelos seus pensamentos, com aquela saia engomada e aquela blusa cor de vinho manchada de azul.

Sobre o baloeiro escreveu também, sentado na praça, sem ao menos saber que estava ali, pernas cruzadas, uma das mãos apoiada no banco de mármore, segurando os balões, e a outra cofiando a barba grisalha. Escreveu sobre os barulhos da praça, da pipoca estourando no carrinho, lá na esquina, e o cheiro chegando cá perto do banco do baloeiro, Escreveu também sobre os meninos saindo da escola, jogando as mochilas para cima, chutando uns aos outros, as beatas enroladas nos seus véus pretos indo para a missa que só começaria ao anoitecer.

Escreveu sobre os pombos cometendo o pecado mortal de cagar na igreja, sem contar o pecado que não tem classificação no livro das coisa ruins do céu que é o da prática do ato sexual no caibro da entrada principal da igreja, mas logo foi se desinteressando por aquilo tudo e desligou o computador sem salvar o texto.

domingo, 3 de setembro de 2023

 

A linha

Foi numa época, quando eu me encontrava no auge da lucidez, e as pessoas, talvez por não me entenderem, me tratando com desdém, que eu descobri que o raciocínio tem uma linha. Sabia o que era, mas não sabia explicar.

O raciocínio tem uma linha. Você vai seguindo aquela linha, de repente, sai dali e pega outro caminho, deixando para voltar depois, e desse caminho você vai para outro, para outro, para vários outros, e depois volta para a linha principal. Foi nessa época também que eu comecei a não admitir que as pessoas saíssem da linha principal e conversassem comigo fazendo de uma linha secundária qualquer a principal. Eu as entendia perfeitamente na linha principal, por que, então, a secundária?

Para tentar me organizar passei a escrever sobre a linha principal e as secundárias. Escrevia até caminhando pela rua, e ia deixando as folhas para trás. Queria entender o raciocínio e queria também que o raciocínio e as pessoas entendessem a minha lógica.

É claro que ninguém entendeu nada, e como sempre acontece, as pessoas resolveram me ajudar, como se eu, e não elas, precisasse de ajuda. Minha fragilidade não permitiu que eu reagisse, e hoje, depois de muito tempo internado, já aceito docilmente que as pessoas passeiem livremente pelas linhas do meu raciocínio.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

 

                                           O Celestial Sorriso da Ira

            Mascando sal, subi a ladeira até o fundo do poço, encontrando pedras moles que espremi tirando gotas de madeira. Distraído, deitei-me num campo coberto de formigas e fiquei a pintar jabutis. O sol queimava-se no belo horizonte (argh!) e eu me aqueci com um cobertor de vidro. Quando o pássaro chegou, com o seu lindo bastão de calha, tive de atirar, matando-me para a sorte. Sem coragem de me penitenciar, contraí um dos meninos e corri até onde o alcance da vista superou, obtendo informações da jovem quadrúpede. Mais tarde, quando as bolhas se desfizeram em advertências, suportei todas as inconfiabilidades, até pisar em uma cabeça de mármore gelatinosa. Foi assim que o tubo de sabão de pedra escorregou entre a vasta cabeleira de um eunuco, trazendo para o meu lado o arrependimento de não ter sabido dominar o impulso da degustação. Quando a brasa da manhã ardia com a lua, mastiguei dois pedaços de lente embaçada e me vi trincado entre a necessidade de expandir e o desejo de desvirtuar. O sentido de observação se aprimorou, e eu consegui saltar o riacho, mas logo me deparei com dois demônios brancos, que me propuseram: um, uma orla semipoluída e outro um arquétipo de nó. Tentando entender melhor aquele trovão, cortei uma das orelhas de um crocodilo e costurei-a no rabo de uma cotovia, que gritou até estilhaçar a já sensível camada que protege a terra das tormentas boreais. A partir de então, só quem não se dava com cadeira de balanço, conseguia argumentar com o celestial sorriso da ira. Quanto mais se eletrificava o desejo de reagir, mais correlação de sulco escorria pelos dedos calosos. A bolha, agora, estendia-se pelo travesseiro e dominava grande parte do esôfago. Nada que se tentasse, com relação ao prosaico mundo das traineiras, seria compensador, uma vez que o manicômio estava restrito a benditos eclesiásticos.

sábado, 26 de agosto de 2023


Eu matei uma formiga

Eu matei uma formiga. Não me senti forte, nem poderoso; aliás, nesse momento, nem pensei no ato de estar matando uma insignificante formiguinha, mas logo essa atitude irracional me levou a pensar no ser humano, na sua necessidade de adquirir poder, na sua capacidade de destruir o belo.

As coisas são tão perfeitas, por que nós resolvemos acabar com tudo? Quando o homem descobriu o verbo, o fogo, a roda, não imaginava que isso, um dia, faria dele um monstro poderoso, capaz de destruir tudo, inclusive a si próprio. A partir destas descobertas o desenvolvimento humano, a evolução, o seu progresso tecnológico foi todo adquirido através de guerras e destruições. O tacape, a flecha, o canhão, o avião, os foguetes, tudo foi inventado pelo homem com a intenção de dominar outros homens.

Eu, como resultado de tudo isso, fiquei olhando aquela formiga caminhando sobre a escrivaninha de tampo de vidro. Ela rodeou o teclado, passou sobre a agenda preta e veio em minha direção. Eu estiquei o dedo indicador da mão direita, posicionei-o um pouco acima e desci com força esmagando-a no vidro.

Só depois de praticar esse ato covarde foi que eu percebi que viver é uma aventura para todos nós, e eu, irracionalmente, acabei com a aventura daquela indefesa formiguinha.

É claro que ninguém vai querer aceitar isso com naturalidade, mas viver é uma aventura também para uma barata.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

 

Insignificância

Você já parou para pensar no quanto insignificante você é? Não estou dizendo no seu quarto, na sua casa, na sua rua, no seu bairro, na sua cidade, no seu estado, no seu país, no mundo.

            Estou dizendo no universo. Você não é nada, não sabe de nada. Sabe aquela verdade absoluta que você sempre defendeu com intransigência, como fato consumado? Não é nada diante da imensidão do desconhecido, portanto, coloque o rabo entre as pernas, saia da soberba e tente entender, pelo menos, o que você está fazendo da sua vida no mundo, no seu país, na sua cidade, no seu bairro, na sua rua, na sua casa, no seu quarto.

sábado, 19 de agosto de 2023

 

A minha cama

A minha cama sempre foi um dos lugares mais aconchegantes, um refúgio onde eu conseguia me confortar. Ali eu me sentia protegido; não por ninguém, mas pela cama, pelas cobertas, pelo quarto, pela intimidade de estar deitado num lugar seguro. E era cair ali e dormir, sem problemas.

Hoje eu não sinto mais essa segurança. Não sinto a proteção de outrora. Estou sempre assustado, esperando que o pior aconteça. No mundo de hoje o pior está para acontecer a qualquer momento e isso mudou tudo.

Talvez seja eu que tenha mudado, pois o mundo está para acabar desde a Era Mesozoica, e isso nunca acontece.        

            Então coloco sobre o ouvido uma almofada e espero, por muito tempo, que os pensamentos se esvaiam, até que eu encontre um pouco de paz antes de voltar a esperar que o pior aconteça.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

 

O amolador

Ser mascote parecia ser a sina do amolador. Ele mascotava sempre que amolava e tudo o que era feito com boa intenção era reconhecido por um único homem: o empreendedor, que vivia dizendo ao mascote para estudar, estudar, estudar, até perder um pedaço da capacidade de raciocínio e concentração. Depois ele deveria aprender a sorrir com o canto da boca para que todas as pessoas aceitassem os seus argumentos, sua arrogância, suas mentiras e hipocrisias, e que, só assim, ele deixaria de ser um mascote e viraria um verdadeiro amolador que amola.

Seria uma dura empreitada, mas o mascote amolador estava decidido a abrir mão de várias situações de prazer para que, um dia, conseguisse alcançar o seu objetivo, que era o de virar um amolador verdadeiro.

Aí, sim! Tudo partiria dele.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

 

Consolidação

Hoje o arbusto curvou-se diante da necessidade de se costurar medidas de suficiência. Hoje, ademais, se consolidou também a caracterização do desejo. Diante de todos os fatos oníricos captados pela manhã, premeditou-se o sofrimento, todavia, andaremos fingindo estabilidade.

Hoje, para justificar a bondade que se acumulou nos processos de rejuvenescimento aleatório, pede-se que se ouça aquele grito de indignação obtusa. Hoje, para melhor dizer, é de se imaginar que nada faltará, além do nada já existente.

            O absurdo do desejo incontrolado, incontido, contestado, não retribuído, me leva a concluir que o dia de hoje só existirá para os outros.

sábado, 5 de agosto de 2023

 

Conquistas

            Você é induzido a mentir como todos mentem, e se não o fizer, estará fora de um mercado próspero, que cresce a cada dia dando grande conforto aos mentirosos. Você é impingido a fingir, como todos fingem, e este é outro mercado promissor. Você sorri com o canto da boca, meneia a cabeça quando ironiza, disfarça um olhar de desaprovação, cospe - em pensamento - no rosto de um desafeto, bajula os poderosos, ignora os necessitados, necessita de cada centavo alheio, e justifica tudo isso em nome de uma causa nobre: acumular o máximo de objetos possíveis, para, no fim, morrer como todo mundo.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

 

                                                     A cirurgia
            

            Desapressado, coloquei o jaleco, a touca verde-clara e sentei-me na poltrona do quarto do hospital para esperar a maca. Subitamente corri para o banheiro e todos me olharam apreensivos, preocupados com o meu estado emocional. Naquele momento eu só queria me olhar no espelho, e rir. Aquele jaleco, aquela touca, a barba por fazer, me fizeram rir até me urinar todo, dando um grande trabalho às pessoas que me acompanhavam. Elas, solidárias, riam também, sem entender que eu, naquele momento, descia da soberba e me enxergava como realmente sou: um monte de carne podre.

domingo, 30 de julho de 2023

 

O homem comum

Eu pareço ser uma pessoa séria. Devido a esta aparência, todos me respeitam e eu dou grande valor a isto. Ninguém sabe quem sou eu. Esta aparência austera esconde uma certa insegurança. Eu jamais revelarei meus sentimentos mais íntimos.

No fundo, atrás da aparência, está um homem comum, que se sensibiliza e chora, sem que ninguém perceba, ao assistir a um filme onde é negado um osso a um cachorrinho vira-lata.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

 

                                             Solidão da Solidão

    
            Eu não aguentava mais o meu chulé; não por não lavar os pés, e sim, por não ter ninguém para lavar as minhas meias, as minhas cuecas, as calças e camisas. Eu não aguentava mais tomar sopa, comer sanduíche, andar amarrotado. Não aguentava a poeira ultrapassando os limites dos cantos dos móveis, as panelas engorduradas, acumulando moscas, a cama eternamente por fazer.

Eu não aguentava viver a solidão da solidão, e num momento inesperado, Dona Ruth voltou para pegar alguns pertences que deixara para trás, e depois de inspecionar a casa, e de sensibilizar-se com a minha postura carente, resolveu retornar ao trabalho, exigindo, obviamente, um salário mais elevado.                                                


domingo, 23 de julho de 2023

 

Da Lágrima à extraventura

Sonhei com a frase: “Da lágrima à extraventura”. No sonho eu não me envolvia numa história. Levantei-me e anotei a frase. Perdi o sono.

Já acordado, na penumbra, apoiando a cabeça no almofadão, imaginei uma linda mulher chorando pelos cantos da sua casa. Ela descobrira há pouco que seu marido a traía, e isso a tornara muito infeliz. 

Enquanto eu imaginava o sofrimento daquela mulher, tocou a campainha da sua casa. Era o entregador da farmácia. Ele era jovem, limpo, até bonito. Ela, depois de conversar um pouco sobre coisas triviais o levou para o quarto. O fato de ela ter transado na cama que vivera bons momentos com o marido a excitou bastante.    Depois foi o entregador de pizza, o da lavanderia, o técnico em informática, até o jovem louro do Pet Shop, que aparentava ser menor de idade foi beneficiado. O tempo foi passando e ela mal se lembrava das infidelidades do marido.

Eu, satisfeito com o desfecho da história, joguei o almofadão para o canto e voltei a dormir, até acordar atrasado para trabalhar.