sábado, 27 de abril de 2024

 

Suçuaranas

            Estou sentado em um banco dos jardins do Palácio das Artes, onde na semana passada um homem me disse para sair porque as folhas da árvore que sobe atrás do banco estavam infestadas de suçuaranas. As folhas realmente estão comidas, porém, daqui não se vê suçuaranas, e sim, um lindo céu azul sem nuvens. As suçuaranas abriram o espaço para que eu possa observar o céu, e eu resolvi arriscar e me sentar debaixo das folhas comidas.

            Talvez eu esteja tentando me auto destruir, deixando que uma enorme suçuarana caia sobre mim e me devore em poucos minutos, e após ruminar na presença de curiosos assustados, cuspa, entre babas e gosmas, a minha roupa ensopada. Isso seria um grande acontecimento para um sábado que não promete nada.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

 

Eu

                Quantos sou? Agora sou eu. Sou também o eu que já fui, e o que serei. Tudo isso num eu só. Sou sempre vários eus agora.

sábado, 20 de abril de 2024

 


Diferenças

        Tudo o que é diferente assusta. Pensar diferente assusta. Agir diferente do assustado assusta. Ser de uma cor diferente, sentir prazer diferente, optar por crenças diferentes, falar ou se calar de maneira diferente também assusta.

        Mas diferente de quê? Diferente de quem está julgando. Como a grande maioria está sempre julgando da mesma maneira, a manada segue com seus cabrestos e balangandãs coloridos, excluindo dos seus grupos os que não usam os mesmos cabrestos. As pessoas só não se assustam com o fato de serem completamente diferentes de todos os outros seres humanos e de todos os outros seres do planeta e do universo.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

 

Memória inconsequente

Apalpei a memória receoso das lembranças que poderiam vir. Só queria aquele rosto que eu tanto amei, e a memória, inconsequente, despejou sobre mim a minha derrota. Aquele rosto que eu tanto amei realmente apareceu, sorrindo feliz, ao lado da sua nova conquista.

sábado, 13 de abril de 2024

 

As ferrugens das coisas

            Acordei inseto de aranha. Tentei me desvencilhar e quanto mais dava braçadas, mais me afundava em teias. O ar escasso me sufocava e o medo do isolamento me transformou em cuspe de sapo. Quando dei por mim, já estava a caminhar numa avenida, e como num sonho, tentava, inutilmente, evitar o olhar de transeuntes assustados e curiosos, como se dissecando as carnes e pelos do meu corpo nu. Nesse momento eu me entreguei às ferrugens das coisas.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

 

Conversa Com Fantasmas 

            Hilário caminhava gesticulando, conversando com fantasmas, e ao perceber a comicidade de seu comportamento, ao falar alto e dar braçadas, como se conversando com alguma matéria sólida ao seu lado, imediatamente passou a batucar na perna, fingindo acompanhar a música que passara a cantar baixinho, porém, logo voltou a conversar, e os fantasmas, não aguentando aquela atitude insólita, se debandaram, deixando-o apavorado no meio da avenida diante de um enorme caminhão que se aproximava em alta velocidade.

domingo, 7 de abril de 2024

 

    Infelizmente o Ziraldo se foi. Que descanse em paz. 

    Coloco aqui um texto que o Ziraldo escreveu sobre a minha arte, que me deixou muito honrado:

    Sou um velho admirador do Nerino, do seu talento, da sua inventiva, da originalidade do seu trabalho. O Nerino é muito, muito criativo. A primeira vez que entrei em contato com ele foi na época do “Palavras”, a revista que Minas fez para o mundo mas desistiu no caminho. Minas não está interessado em conquistar o mundo. Mas o Nerino está. E aí, fizemos na revista, quatro páginas sobre seus desenhos de humor e suas frases de grande efeito. Agora, descubro que o Nerino pinta e sua pintura é absolutamente pessoal, só parecida com ele mesmo, com seus textos  que, vocês precisam ler, são de maior qualidade. Acredito que há uma forte dose surreal – no sentido original, franco-espanhol do termo -  no seu trabalho, mas não o coloquemos sob rótulos.

    A pintura – ou o trabalho todo – do Nerino é desconcertante, impactante, original, diferente entre nós, no nosso tempo. Deixa o Nerino criar. A arte que se faz em Minas vai ganhar com isso.  A arte vai ganhar com isso.



sábado, 6 de abril de 2024

 

Tudo se resolverá da pior forma

Pássaros despencam sobre o asfalto caudaloso.

Crianças brincam com vísceras de animais de estimação.

Beatas queimam crucifixos para aquecer a sopa.

Políticos, desesperados, se penitenciam com correntes de ferros enferrujados.

Cão feroz se rende ao carinho de um gato.

Crianças se surpreendem diante de suas súbitas bondades.

Ninfetas, insatisfeitas, se organizam para lutar contra a apatia dos idosos babões. Bebezinhos chorões calam-se, causando insegurança a mães aflitas.

Gemidos angustiantes determinam que, apesar de as coisas não estarem funcionando de acordo com os padrões normais de funcionamento, tudo se resolverá da pior forma.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

O voo solitário

            O passarinho, acima do final da árvore, voa solitário. Talvez lá em cima ele cante, mas o seu canto desapareça para nós. Deixa o canto desaparecer, contanto que ele permaneça a voar para que a gente voe com ele. Ao entardecer, depois de encantar o céu, ele sempre volta a encantar a árvore.