Eu
Quantos
sou? Agora sou eu. Sou também o eu que já fui, e o que serei. Tudo isso num eu
só. Sou sempre vários eus agora.
Diferenças
Tudo
o que é diferente assusta. Pensar diferente assusta. Agir diferente do
assustado assusta. Ser de uma cor diferente, sentir prazer diferente, optar por
crenças diferentes, falar ou se calar de maneira diferente também assusta.
Mas diferente de quê? Diferente de quem está julgando. Como a grande maioria está sempre julgando da mesma maneira, a manada segue com seus cabrestos e balangandãs coloridos, excluindo dos seus grupos os que não usam os mesmos cabrestos. As pessoas só não se assustam com o fato de serem completamente diferentes de todos os outros seres humanos e de todos os outros seres do planeta e do universo.
As ferrugens das
coisas
Acordei inseto de aranha. Tentei me desvencilhar e quanto mais
dava braçadas, mais me afundava em teias. O ar escasso me sufocava e o medo do
isolamento me transformou em cuspe de sapo. Quando dei por mim, já estava a
caminhar numa avenida, e como num sonho, tentava, inutilmente, evitar o olhar
de transeuntes assustados e curiosos, como se dissecando as carnes e pelos do
meu corpo nu. Nesse momento eu me entreguei às ferrugens das coisas.
Conversa Com Fantasmas
Hilário
caminhava gesticulando, conversando com fantasmas, e ao perceber a comicidade
de seu comportamento, ao falar alto e dar braçadas, como se conversando com
alguma matéria sólida ao seu lado, imediatamente passou a batucar na perna,
fingindo acompanhar a música que passara a cantar baixinho, porém, logo voltou a
conversar, e os fantasmas, não aguentando aquela atitude insólita, se
debandaram, deixando-o apavorado no meio da avenida diante de um enorme
caminhão que se aproximava em alta velocidade.
Infelizmente o Ziraldo se foi. Que descanse em paz.
Coloco aqui um texto que o Ziraldo escreveu sobre a minha arte, que me deixou muito honrado:
Sou um velho admirador do Nerino, do seu talento, da sua
inventiva, da originalidade do seu trabalho. O Nerino é muito, muito criativo.
A primeira vez que entrei em contato com ele foi na época do “Palavras”, a
revista que Minas fez para o mundo mas desistiu no caminho. Minas não está
interessado em conquistar o mundo. Mas o Nerino está. E aí, fizemos na revista,
quatro páginas sobre seus desenhos de humor e suas frases de grande efeito.
Agora, descubro que o Nerino pinta e sua pintura é absolutamente pessoal, só
parecida com ele mesmo, com seus textos
que, vocês precisam ler, são de maior qualidade. Acredito que há uma
forte dose surreal – no sentido original, franco-espanhol do termo - no seu trabalho, mas não o coloquemos sob
rótulos.
A pintura – ou o trabalho todo – do Nerino é desconcertante,
impactante, original, diferente entre nós, no nosso tempo. Deixa o Nerino criar.
A arte que se faz em Minas vai ganhar com isso.
A arte vai ganhar com isso.
Tudo se resolverá da pior forma
Pássaros
despencam sobre o asfalto caudaloso.
Crianças
brincam com vísceras de animais de estimação.
Beatas
queimam crucifixos para aquecer a sopa.
Políticos,
desesperados, se penitenciam com correntes de ferros enferrujados.
Cão
feroz se rende ao carinho de um gato.
Crianças
se surpreendem diante de suas súbitas bondades.
Ninfetas,
insatisfeitas, se organizam para lutar contra a apatia dos idosos babões.
Bebezinhos chorões calam-se, causando insegurança a mães aflitas.
Gemidos angustiantes determinam que, apesar de as coisas não estarem funcionando de acordo com os padrões normais de funcionamento, tudo se resolverá da pior forma.
O voo solitário
O
passarinho, acima do final da árvore, voa solitário. Talvez lá em cima ele
cante, mas o seu canto desapareça para nós. Deixa o canto desaparecer, contanto
que ele permaneça a voar para que a gente voe com ele. Ao entardecer, depois de
encantar o céu, ele sempre volta a encantar a árvore.
Estava brotando uma poesia a
minha cabeça. Eu não sabia do que se tratava, mas sabia que era um surto. Então comecei a escrever o que estava lá dentro para realmente escrever o poema
Começou assim:
surtei!
assim
que sá
de fé
surtei
pra quem
disser
que é
não sei
Sem te falar
só que
surtei
eu sei
brinquei
cantei
falei
pensei
gostei
eu sei
suei
surtei
tentei
falei
só que
surtei
surtei!
assim
que vi
consenso
eu sei
não vou
sentir
e não
gostei
a denegrir
pavor
surtei
com fé
sofisticado
hei
de não
pensar
amor
surtei
pra redigir
fantasmas
sei
e violar
cabeças
hei
eu sei
surtei
tentei
fugir de mim (sair de mim)
eu sei
As asas
da imaginação
O
ovo é a primeira casa da ave. Nós não damos importância para o que está dentro
desse envoltório protetor. Ali há uma vida, e nós, displicentemente, a abortamos,
jogando-a na frigideira.
Eu, como os pássaros, já estive dentro de uma espécie de ovo. Esse ovo foi o útero da minha mãe. O ovo é um útero com vida própria. Um útero afastado da mãe. O meu ovo era aconchegante, andava pela casa comigo, tinha sentimentos, passou tudo isso para mim. O ovo do pássaro é aquecido pela mãe, e depois de algumas semanas, o pássaro, que está sendo gerado ali, sente uma necessidade incontrolável de se libertar, dando bicadas para todo lado. Sai de lá cego, e depois de um certo tempo, se joga, sem noção do que virá, e voa. Eu também costumo me jogar, voando com as asas da minha imaginação.
Pernas de formiga
De
volta ao útero
Fui ao otorrino. Estava com dor de ouvido. Ele colocou água quente lá dentro para dissolver a cera. Isso foi uma das melhores sensações que eu senti. Foi como se eu tivesse voltado ao útero materno. É claro que eu não me lembro da paz e segurança que deve ser o útero materno, mas senti um calor aconchegante, Inexplicável, naquele momento. Quando eu saí do consultório, Já andando entre as pessoas na rua, olhava encantado para tudo com a sensibilidade e a curiosidade de quem acabara de nascer.
O sonho eterno
Que bom seria se pudéssemos viver eternamente em um sonho. Andar pela rua vestido ou nu e não se espantar com o julgamento alheio. Encontrar algum parente falecido e conversar com ele sabendo que ele está morto. Mudar de cenário a cada momento. Mostrar indiferença diante das situações mais escabrosas. Seria divertido a sensação de liberdade plena. É claro que vivendo em um sonho, terÍamos também nossos pesadelos, e o pior: vivendo eternamente em um sonho, após um pesadelo, jamais acordarÍamos para sentir aquela sensação agradável e libertadora por ter acordado.
Perdi a validade
Eu não sou de lágrimas, lamúrias, lástimas. Sou como uma estaca que não sente o peso da marreta e vai se afundando lentamente. Apesar de ter passado toda a vida sentindo-me assim, hoje rendi-me às lágrimas, lamúrias e lástimas. Eu, uma gota de suor, um risco de lápis sem ponta, uma folha seca no bueiro. Eu sou uma lâmpada apagada. Perdi a validade. PQP.
A birosca
O bar, o seu dono e todos os seus frequentadores eram da
favela. O dono do bar gostava de Mozart e tinha uma reprodução de Toulouse
Loutrec na parede. Por dentro do balcão, feito com restos de madeira de obras
da cidade havia alguns livros que o dono do bar gostava de folhear. Ao anoitecer
ele servia cachaça, e salgadinhos para fregueses indiferentes, que sequer
olhavam para a reprodução de Toulouse Loutrec.
O dono do bar também não se interessava pelas conversas dos seus fregueses, porém sentia-se ofendido quando carregava na maquiagem para agradar e era tratado com a mesma indiferença que os frequentadores dispensavam à obra de Loutrec.
Uma gota de
orvalho escorre sobre a folha e atinge uma formiga. O impacto a imobiliza. Logo
ela se recompõe. Olha para cima maldizendo as árvores, as folhas, o orvalho e
desiste de carregar a folha. Segue outro caminho. Resolve se aventurar pela
floresta. Decide não mais trabalhar como uma escrava, engordando rainhas
fanfarronas, protegendo ovinhos mimados que logo se transformarão em escravas
carregadeiras.
Tudo isto é muito bonito, mas é claro que nunca vai acontecer. Só acontece na minha imaginação, quando tento, olhando uma formiguinha carregando uma folha, libertá-la da escravidão.
Faxina interna
Apareceu uma dúvida e eu tentei me reorganizar, fazendo uma faxina no meu cérebro: juntei causas e consequências, limpei falsos sossegos, podei insignificâncias, rasguei insatisfações reprimidas, dei uma grande atenção às insuficiências íntimas, desprezei os impróprios e custei a me livrar dos despropósitos. Depois que estava quase tudo limpo, saí flanando pela noite à procura de novas dúvidas.
O meu coração
O meu coração é incansável e trabalhador. Funciona há vários anos, sem descanso, sem interrupção. Os corações de todos funcionam da mesma forma, mas o meu é especial. O meu coração é bom, e eu sou muito recriminado por isso. Por mais que eu queira, não consigo endurecer meu coração. Ele é mole, flexível, compreensivo, carinhoso e eu sei o preço que pago por ser assim.
Vida ingrata
Essa vida é muito ingrata. Nós, os poderosos, acumulamos
grandes fortunas e no final fica tudo para os outros. É sempre uma grande
alegria conviver com o dinheiro, com o poder, comprar estabilidade, pessoas,
bens materiais, mas é, ao contrário, desanimador morrer e ter que começar tudo
do zero na outra vida. Se é que existe outra vida!
É duro constatar, mas o certo é que o dinheiro pode comprar
um bom caixão, mas não garante um bom lugar no céu.
Dois baques
O passarinho cantava no galho: Piiiiiu, piiiiu...,pipipipipipiipipruuuuuuuu
Piiiiiu, piiiiu...,pruuuuuuuuupup utruuuuuuuu... piupiupiupiupiupiupiupruuuuuuuuu...
Um
homem vinha andando, mascando fumo, espingarda debaixo do braço, chapéu de
couro surrado, olhando para o chão. Andava sem fazer barulho, com a intenção de
chegar mais perto para matar o passarinho. De repente:
RUAAAFF...PLURT... Cuspiu! O passarinho parou de cantar assustado e voou para
longe. Enquanto isto as formigas, sôfregas, almoçavam a cusparada.
O homem ainda tentou sacar a arma,
desistindo logo em seguida. Coitado, nesse dia ele sofreu dois baques: não
matou o passarinho e ainda alimentou as formigas que tanto detestava.
Carências
Uma velhinha, acompanhada por duas pessoas, saía de um
restaurante. Ela olhava para o vazio e aquela cena me deprimiu. As pessoas
geralmente acham que o velho incapaz precisa sair de casa para se distrair. Não
é verdade. O velho incapaz quer carinho dentro de casa, e de preferência, que
não saia nunca, mas que o carinho que receba o coloque, de uma certa forma, em
contato com o mundo.
As pessoas oferecem o passeio com tanto entusiasmo que os
velhos não são capazes de negar. Logo nós seremos os velhos incapazes e
sentiremos, na pele, a falta de noção de quem só quer ajudar.
Coleira ante pulgas
O vento, o rio e o tempo
Será que o vento é como o rio, que passa num passar sem fim? Ou ele passa e volta, fazendo piruetas no céu? Será que o vento é implacável como o tempo e o rio, que passam, passam, sem piedade, e nunca voltam? Que passe o vento, que passe o rio, mas o tempo, que passe pela sua vontade, não pela minha.
Apego
Eu sempre fui apegado às coisas. Primeiro foi a chupeta.
Chupava aquilo como se fosse um peito leitoso. O tempo foi passando e eu não largava o
vício. Depois foi a bola que, mesmo depois de furada, ainda levou bons
pontapés. Depois os soldadinhos de chumbo, as figurinhas, os patins, as
bicicletas, as luvas de boxe.
Quando cresci fui apegado às mulheres, ao dinheiro, carros, viagens, orgias e boa comida. Destruí muita gente para conquistar tudo isso, e agora, luto desesperado para me desapegar de um câncer que se apossou de mim.
O Braço
Foi uma brusca freada, e eu, da varanda, de rosto franzido e
olhos fechados, esperei por intermináveis segundos até que o carro parasse, e
justamente nessa hora, ouvi um barulho seco, compacto, vindo do telhado, como
se um saco de farinha tivesse sido jogado ali. Olhei para cima e do lugar onde
me encontrava vi apenas alguns dedos transpondo a quina da calha. Peguei
rapidamente a escada e subi, na tentativa de salvar aquela criatura, porém, em
cima do telhado só havia um braço acompanhando aqueles dedos inertes.
Desesperado, olhei para a rua e gritei, chamando as pessoas que pareciam procurar algo ao redor de um corpo já coberto com folhas de jornal.
Capa de cordeiro
Além de sangue, sistema vascular, músculos estriados, plexo braquial, artérias, pleura diafragmática, brônquio principal, pericárdio fibroso e grandes vasos, o coração guarda também a capacidade de nos iludir com relação ao amor, pois, o amor é traiçoeiro; astuto, falso, matreiro. Esconde a pele do lobo numa capa de cordeiro.
O filme
Imagino-me em um filme, eu o ator, o criador, o
diretor. Fácil viver lá dentro. Lá eu não tenho medo, eu represento o medo. Eu
posso estar andando nos becos mais sórdidos e, de repente, ser hostilizado por
um grupo de viciados. Minha reação pode ser infinita: posso me impor, lutar até
a morte, posso usar como arma a retórica, depende do texto. Posso sair dali sem
que ninguém me veja, posso até morrer que nada vai mudar. Eu não vou morrer
mesmo! No fim eu troco de roupa e vou-me embora.
Se não existisse a morte nós viveríamos eternamente dentro de um filme, sem medo, sem angústia por sabermos que ela não estaria nos espreitando, com aquela sua roupa preta e a foice em uma das mãos. Mas sejamos sinceros: o nosso tédio seria bem maior.
As mascaras
“As máscaras
caíram. Ninguém mais consegue se disfarçar. Cada um é o que é e nunca mais
agirá de forma conveniente com suas mentiras.”
Isso seria o princípio de algo verdadeiro que
jamais acontecerá. As máscaras jamais cairão, e as pessoas, assustadas, sempre
as usarão como uma forma de se protegerem dos outros e de si próprias. Eles não
tem coragem de se aceitar como verdadeiramente são, e as máscaras os ajudam a
ser como os outros, que não são o que são.
Resistência
Ela já se foi, só eu permaneço nesta sala imensa, irritado
com o eco de pequenos barulhos que faço ao movimentar a perna para evitar
dormência. Estou sentado no chão a contemplar algumas contas do colar que partiu
quando eu, na hora da agressão, tentava me defender. São falsas contas, como já
é falso, há muito tempo, o nosso relacionamento.
Eu já não me importo com as suas indiscretas e infrutíferas tentativas de envolver-se com a juventude, porém, a juventude tenta, discretamente, envolver-se comigo. Isso faz com que ela adquira, nas suas expressões e atitudes, um desejo de esmagar o mundo, uma necessidade de destruir o belo, uma fúria incontida, que hoje culminou numa cena patética, fazendo com que os convidados, inclusive o pivô da discussão, que eu espero rever em breve, saíssem discretamente, deixando-me aqui sentado, tentando gastar, até a última gota, a resistência inata do ser humano de tomar atitude quando o assunto é a separação.
Carência
Um tiro certeiro acertou um certo sujeito chamado João. João
caiu de bunda no chão, mas o tiro que levou não acertou sua bunda, e sim, sua
mão. O tombo foi de susto e João, ao se levantar, pegou a mão com a outra e fez
uma careta. Como não havia ninguém olhando, parou de fazer careta e levou sua
mão para o hospital.
Só faltava mancar de tanta carência afetiva. Sua mãe não
estava lá para dar-lhe um beijinho e afagar-lhe os cabelos. Seu pai não estava
lá para enfiar-lhe a mão a cara, dizendo que homens não choram. Sua mulher não
estava lá para fazer um escândalo e desmaiar ao se deparar com aquela mão
ensanguentada.
E lá ia João, pensando... Pensando e mancando, mancando e chorando, chorando e s’amando, s’amando e sarando, sarando e se lembrando de que sarado a vida é outra, mais dura, mais difícil de se levar, mais difícil de aguentarrrrrrrrrrrrrgh.
A responsabilidade
A responsabilidade é uma merda. É claro
que todos nós devemos estar atentos para não abusarmos da falta dela. Tirando as
pessoas que se escondem sob uma capa de responsabilidade para executar as
maiores falcatruas, a responsabilidade é castradora. Quanto mais eficiente,
quanto mais centrado em coisas inúteis, mais responsabilidade você adquire, e
isto não o deixa se movimentar.
Para a maioria das pessoas a responsabilidade é o céu e a falta dela é o inferno. Já virou lugar-comum dizer que o inferno é melhor do que o céu, mas, Deus que me perdoe: viva a falta de responsabilidade!
Desconforto
Na parede, amarelado sob uma moldura rota, o meu retrato, quando jovem, inspira mais respeito do que esse caco na cadeira de balanço, a forçar a perna num movimento ritmado, como se amenizando a eterna estagnação existente na casa. Até a mosca, que entrou fazendo três ou quatro visitas de inspeção em pontos distintos da sala preferiu o caco ao retrato emoldurado, causando-me um profundo desconforto.
Os
velórios
Os velórios me deprimiam. O defuntos, nem pensar! Não os encaravam. Eles eram sóbrios, superiores. Sabiam mais do inimaginável do que eu poderia imaginar. Hoje eu me dou com eles. Meus amigos estão partindo e a cada despedida eu me sinto mais à vontade. Passei a me encarar ali. Logo será a minha vez, e sempre me pego arrumando o colarinho de um ou outro, como se cuidando da minha aparência para partir com dignidade.
Máquina enferrujada
É... O mundo vai girando e a gente girando junto. É uma
imensidão desconcertante, assustadora o universo, e se a gente estiver sem
dinheiro para pagar as contas, esse mundo, essa imensidão perde por completo a
importância. A gente, na maioria das vezes, aqui nesse mundinho insignificante,
sem dinheiro para pagar as contas não se assusta com a imensidão do universo.
A máquina está enferrujada, não funciona, e os bichos da ferrugem atacam, atacam, e você lá, deitado com as mãos apoiando a cabeça sobre o almofadão, olhando para a imensidão do universo, sem ao menos perceber que ali existe um universo para ser observado.
O carregador oficial
O bêbado tinha um carregador. O carregador era sério, devia ser seu amigo ou parente. O bêbado gesticulava ao falar. Ninguém entendia seus gestos, nem suas palavras. O carregador era paciente e parece que cumpria uma obrigação. Eu não sabia se aquele era o carregador oficial do bêbado, mas ele estava desempenhando aquela função com muito esmero. Na sacada, a mulher recebeu o bêbado e o levou para dentro, como se leva algo difícil de carregar.
O carregador foi-se embora. A mulher do bêbado deve ser o carregador oficial.
Dura
Realidade
Tomado por uma grande necessidade de liberdade, saí, atravessei a cidade e me situei num campo florido, até que um enxame de abelhas levou-me para a praia, deixando-me a contemplar pernas roliças, seios firmes e bem delineados de lindas mulheres, e no momento em que essas mulheres começaram a tirar os seus biquínis, tentando, delicadamente, esconder o sexo, apesar de seus olhares insinuantes, e eu já sentindo um princípio de ereção, ouvi o barulho da portinha se abrindo e vi a panela com um caldo marrom sendo jogada cárcere adentro, trazendo-me de volta para a minha dura realidade.
Show aéreo
Era um show
acrobático aéreo. Os aviões faziam barulho, e eu, amedrontado, segurava a barra
da saia da minha mãe. O show dos urubus era bem melhor. Eu costumava me deitar
na grama para voar com eles. Eles bailavam nas alturas sem bater asas. Pareciam
estrelinhas pretas no céu azul, e quanto mais altos, menores ficavam. Eu os
admirava, até o dia que alguém perguntou o que eu seria quando crescesse. Eu
respondi urubu. Depois, não aguentei a pressão. Também não expliquei nada.
Agora ali,
olhando os aviões, segurando a barra da saia da minha mãe, eu queria estar
vendo urubus. Urubus não fazem barulho, nem caem.
Dilúvio
A maioria de nós quer chorar e não consegue. Se acontecesse
de todos chorarem ao mesmo temo, as lágrimas inundariam o mundo, e talvez um
grande momento de sensibilidade superasse os momentos de aflição em que
vivemos. Eu não consigo chorar, portanto, estou predestinado à aflição, mas não
fico aflito aqui, quieto no meu canto. Tento compartilhar a minha aflição com
todas as pessoas que me cercam.
Elas que me perdoem!
Velório
Quanto mais os anos passam, mais mortos você visita, e é
claro, a gente sempre torce para não ser visitado. Quando eu estou lá, no
velório, visitando um desses mortos, sinto que ele apresenta-se de uma forma
muito esnobe, ali deitado, não participando de nada ao seu redor. Às vezes eu
sinto que eles levam certa vantagem sobre as pessoas que ali estão, pois, já
têm a experiência da morte e as pessoas não. Eles já podem estar envolvidos com
outras maneiras de ser, ou com o nada absoluto, com o descanso total, com o
descanso que não tem graça. De certa
forma eu prefiro estar ali vivo, adquirindo mais experiência em vida, não sei
para quê.
Esta é a minha vantagem.
Dura realidade
A
musica que eu ouvi era antiga, muito antiga, e me remeteu ao passado. Na época
em que eu ouvia essa música eu era muito feliz e, imediatamente, senti toda
aquela felicidade.
Essa sensação agradável, como se a vida voltasse a ser o que era, durou muito pouco, e apesar de ter me remetido a um maravilhoso lugar do passado, não foi capaz de me segurar lá, devolvendo-me para o poço escuro e silencioso onde eu me encontrava antes de ouvi-la.
Del
Quando criança eu não queria ser visto, e sempre que isso acontecia, tapava os olhos com as mãos. Assim protegido ninguém me via. Ao tirar as mãos, tudo voltava ao que era, e no tempo em que eu me ausentava, minha imaginação ia para bem distante. O sentimento de liberdade ocasionado pela minha ausência me proporcionava um grande prazer. Essa era a tecla Del da minha infância.
O palhaço
O circo está armado. A trapezista, com as mãos banhadas em
talco, espera ansiosa pelo início do espetáculo. O palhaço retoca a maquiagem.
Já colocou sua gravata. Daqui a pouco enfrentará um trânsito infernal até o
picadeiro. A mulher da corda prepara as crianças para a escola. O palhaço, em
breve entrará na jaula dos leões. Ele ajuda o domador, e, certamente, tomará
algumas chicotadas.
Mais um dia se inicia. Este é um retrato do nosso povo...
Uma tela em branco
Uma
tela em branco no computador, em determinados momentos, é de matar qualquer um de
pavor. É como uma multidão atenta, interrogativa, esperando você falar, e você
olhando apavorado sem saber o que dizer. Uma tela em branco, no computador, só
pode ser comparada a uma tela de pintura em branco, esperando as primeiras
pinceladas. As duas causam o mesmo sofrimento. Uma tela em branco no computador
não passa de uma tela em branco, e o computador não passa de uma máquina que,
sem os nossos comandos, jamais conseguirá se movimentar.
A
tela está lá, vazia, esperando que você coloque o que quiser. Que seja um “puta
que os pariu” ou a descrição de uma flor. Você pode falar mal de alguém, falar
de coisas boas ou ruins, pode mentir descaradamente, tentar escrever em toda a
página, como estou tentando fazendo agora, ou pode falar tudo com apenas três
palavras. Quando você pensa em falar tudo com apenas três palavras, isto vira
um desafio, uma obsessão, e você começa a tentar imaginar quais palavras seriam
essas três, até descobrir que poderia ser: “Estou com fome”, e sair correndo
para comer um sanduíche.
Voltei!
Uma tela de computador em branco assusta, deprime, desafia. Pode causar grande alegria quando as ideias começam a brotar ou uma grande frustração quando nada acontece.
A fragilidade do desejo
Ele era estagiário, ela, chefe de setor. Ela procurava, ele
ardia. Ele desejou aquele corpo de sereia madura, ela, aventura. No motel ele
desfez-se das vestes e expôs sua nudez sem constrangimento. Ela se despiu em
parte.
Ele, da piscina, passou a observá-la: canelas finas, ancas
largas, diferentes das de sua preferência nas revistas eróticas. Sob o sutiã
transparente, os seios, de aréolas e bicos escuros, tentavam escapar. Aquele
modelo, de qualidade dúbia, não era o de sua preferência.
Ele mergulhou, eternizando os segundos. Ela tentou, em vão, solidificar o vento. Ele se desculpou. Ela pagou a conta. Ele voltou para as suas revistas.
Mundo maravilhoso
O mundo é uma maravilha. Tirando as coisas que atrapalham, é
uma maravilha. As árvores, os pássaros, todos os animais, enfim, tudo é
maravilhoso. Uma cidade bem planejada, uma boa qualidade do ar para todos,
educação e qualidade de vida para que os ânimos não se exaltem, boas condições
de saúde, muita confraternização e amizade entre todos é que fazem desse mundo
uma maravilha.
Às vezes alguém desanima, acha que o mundo não é tão
maravilhoso como todos acham. Esses são os pessimistas que, só porque algumas
árvores são cortadas, algumas fábricas emitem gazes tóxicos na atmosfera, alguns
pássaros e abelhas morrem intoxicados, algumas escolas não cumprem o seu papel
de ensinar e educar, e alguns hospitais não dão o mínimo de condições
necessárias para que um cidadão tenha um tratamento adequado, não vêm que o
mundo é maravilhoso.
Quem não vê isso são os alienados que, se gastassem um pouco do seu tempo informando-se, atualizando-se, assistindo a um bom programa de televisão aos domingos, entenderiam que realmente o mundo é maravilhoso.