sábado, 16 de março de 2024

 

As asas da imaginação

            O ovo é a primeira casa da ave. Nós não damos importância para o que está dentro desse envoltório protetor. Ali há uma vida, e nós, displicentemente, a abortamos, jogando-a na frigideira.

            Eu, como os pássaros, já estive dentro de uma espécie de ovo. Esse ovo foi o útero da minha mãe. O ovo é um útero com vida própria. Um útero afastado da mãe. O meu ovo era aconchegante, andava pela casa comigo, tinha sentimentos, passou tudo isso para mim. O ovo do pássaro é aquecido pela mãe, e depois de algumas semanas, o pássaro, que está sendo gerado ali, sente uma necessidade incontrolável de se libertar, dando bicadas para todo lado. Sai de lá cego, e depois de um certo tempo, se joga, sem noção do que virá, e voa. Eu também costumo me jogar, voando com as asas da minha imaginação.

sábado, 9 de março de 2024

 

Pernas de formiga

            A formiga mexia as pernas. Mexia todas elas. São três de cada lado, eu contei. Ela estava parada, só mexendo. Num determinado momento, sentou-se e esticou as dianteiras, como se fosse alcançar alguma coisa. Ela ficou um longo tempo como se numa academia, fazendo ginástica. Depois saiu apressada, deixando-me lá, com dor nas pernas por ter ficado tanto tempo ajoelhado para observá-la


domingo, 3 de março de 2024

            Dizem que a morte é um sono eterno sem sonhos. Muita gente não merece esse sono. Vêm, aprontam, matam, roubam, mentem, e depois querem o sono eterno. A esses eu proponho uma insônia eterna. Uma insônia eterna com um desesperado desejo de dormir.

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

 

De volta ao útero

            Fui ao otorrino. Estava com dor de ouvido. Ele colocou água quente lá dentro para dissolver a cera. Isso foi uma das melhores sensações que eu senti. Foi como se eu tivesse voltado ao útero materno. É claro que eu não me lembro da paz e segurança que deve ser o útero materno, mas senti um calor aconchegante, Inexplicável, naquele momento. Quando eu saí do consultório, Já andando entre as pessoas na rua, olhava encantado para tudo com a sensibilidade e a curiosidade de quem acabara de nascer.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

 

O sonho eterno

            Que bom seria se pudéssemos viver eternamente em um sonho.  Andar pela rua vestido ou nu e não se espantar com o julgamento alheio. Encontrar algum parente falecido e conversar com ele sabendo que ele está morto. Mudar de cenário a cada momento. Mostrar indiferença diante das situações mais escabrosas. Seria divertido a sensação de liberdade plena. É claro que vivendo em um sonho, terÍamos também nossos pesadelos, e o pior: vivendo eternamente em um sonho,  após um pesadelo, jamais acordarÍamos para sentir aquela sensação agradável e libertadora por ter acordado.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

 

Perdi a validade

            Eu não sou de lágrimas, lamúrias, lástimas. Sou como uma estaca que não sente o peso da marreta e vai se afundando lentamente. Apesar de ter passado toda a vida sentindo-me assim, hoje rendi-me às lágrimas, lamúrias e lástimas. Eu, uma gota de suor, um risco de lápis sem ponta, uma folha seca no bueiro. Eu sou uma lâmpada apagada. Perdi a validade. PQP.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

 




A birosca

O bar, o seu dono e todos os seus frequentadores eram da favela. O dono do bar gostava de Mozart e tinha uma reprodução de Toulouse Loutrec na parede. Por dentro do balcão, feito com restos de madeira de obras da cidade havia alguns livros que o dono do bar gostava de folhear. Ao anoitecer ele servia cachaça, e salgadinhos para fregueses indiferentes, que sequer olhavam para a reprodução de Toulouse Loutrec.

            O dono do bar também não se interessava pelas conversas dos seus fregueses, porém sentia-se ofendido quando carregava na maquiagem para agradar e era tratado com a mesma indiferença que os frequentadores dispensavam à obra de Loutrec.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

 

A revolta da formiga

Uma gota de orvalho escorre sobre a folha e atinge uma formiga. O impacto a imobiliza. Logo ela se recompõe. Olha para cima maldizendo as árvores, as folhas, o orvalho e desiste de carregar a folha. Segue outro caminho. Resolve se aventurar pela floresta. Decide não mais trabalhar como uma escrava, engordando rainhas fanfarronas, protegendo ovinhos mimados que logo se transformarão em escravas carregadeiras.

            Tudo isto é muito bonito, mas é claro que nunca vai acontecer. Só acontece na minha imaginação, quando tento, olhando uma formiguinha carregando uma folha, libertá-la da escravidão.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

 

Faxina interna

            Apareceu uma dúvida e eu tentei me reorganizar, fazendo uma faxina no meu cérebro: juntei causas e consequências, limpei falsos sossegos, podei insignificâncias, rasguei insatisfações reprimidas, dei uma grande atenção às insuficiências íntimas, desprezei os impróprios e custei a me livrar dos despropósitos. Depois que estava quase tudo limpo, saí flanando pela noite à procura de novas dúvidas.

sábado, 27 de janeiro de 2024

 

Os demônios

            As mulheres são anjos quando as queremos. Quando não as queremos mais, são demônios refletidos nas pupilas de um cão. Para elas nós também somos assim, portanto há de se considerar que todos nós, ao término de um relacionamento, somos anjos caídos refletidos nas pupilas de um cão. 

sábado, 20 de janeiro de 2024

 

O meu coração

            O meu coração é incansável e trabalhador. Funciona há vários anos, sem descanso, sem interrupção. Os corações de todos funcionam da mesma forma, mas o meu é especial. O meu coração é bom, e eu sou muito recriminado por isso. Por mais que eu queira, não consigo endurecer meu coração. Ele é mole, flexível, compreensivo, carinhoso e eu sei o preço que pago por ser assim.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

Vida ingrata

Essa vida é muito ingrata. Nós, os poderosos, acumulamos grandes fortunas e no final fica tudo para os outros. É sempre uma grande alegria conviver com o dinheiro, com o poder, comprar estabilidade, pessoas, bens materiais, mas é, ao contrário, desanimador morrer e ter que começar tudo do zero na outra vida. Se é que existe outra vida!

É duro constatar, mas o certo é que o dinheiro pode comprar um bom caixão, mas não garante um bom lugar no céu.

sábado, 13 de janeiro de 2024

 

Dois baques

O passarinho cantava no galho: Piiiiiu, piiiiu...,pipipipipipiipipruuuuuuuu Piiiiiu, piiiiu...,pruuuuuuuuupup utruuuuuuuu... piupiupiupiupiupiupiupruuuuuuuuu...

            Um homem vinha andando, mascando fumo, espingarda debaixo do braço, chapéu de couro surrado, olhando para o chão. Andava sem fazer barulho, com a intenção de chegar mais perto para matar o passarinho. De repente: RUAAAFF...PLURT... Cuspiu! O passarinho parou de cantar assustado e voou para longe. Enquanto isto as formigas, sôfregas, almoçavam a cusparada.

            O homem ainda tentou sacar a arma, desistindo logo em seguida. Coitado, nesse dia ele sofreu dois baques: não matou o passarinho e ainda alimentou as formigas que tanto detestava.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

 

Carências

Uma velhinha, acompanhada por duas pessoas, saía de um restaurante. Ela olhava para o vazio e aquela cena me deprimiu. As pessoas geralmente acham que o velho incapaz precisa sair de casa para se distrair. Não é verdade. O velho incapaz quer carinho dentro de casa, e de preferência, que não saia nunca, mas que o carinho que receba o coloque, de uma certa forma, em contato com o mundo.

As pessoas oferecem o passeio com tanto entusiasmo que os velhos não são capazes de negar. Logo nós seremos os velhos incapazes e sentiremos, na pele, a falta de noção de quem só quer ajudar.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

 

Coleira ante pulgas

            O meu cachorro não tem pulgas. Ele usa uma coleira ante pulgas. A minha avó, se visse isso, não acreditaria. Jamais veria o cachorro se coçando num canto da casa. Isso acabaria com o motivo que ela sempre usava para hostilizá-lo. Com o fim das pulgas, talvez ela mudasse o foco e se voltasse contra mim. Ainda bem que não existia coleira ante pulgas nesse tempo. O cachorro foi uma espécie de escudo de proteção que o universo conspirou a meu favor.


quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

 

 

O vento, o rio e o tempo

             Será que o vento é como o rio, que passa num passar sem fim? Ou ele passa e volta, fazendo piruetas no céu? Será que o vento é implacável como o tempo e o rio, que passam, passam, sem piedade, e nunca voltam? Que passe o vento, que passe o rio, mas o tempo, que passe pela sua vontade, não pela minha.

sábado, 23 de dezembro de 2023

 

Apego

Eu sempre fui apegado às coisas. Primeiro foi a chupeta. Chupava aquilo como se fosse um peito leitoso. O tempo foi passando e eu não largava o vício. Depois foi a bola que, mesmo depois de furada, ainda levou bons pontapés. Depois os soldadinhos de chumbo, as figurinhas, os patins, as bicicletas, as luvas de boxe.

           Quando cresci fui apegado às mulheres, ao dinheiro, carros, viagens, orgias e boa comida. Destruí muita gente para conquistar tudo isso, e agora, luto desesperado para me desapegar de um câncer que se apossou de mim.

sábado, 16 de dezembro de 2023

 

O Braço

Foi uma brusca freada, e eu, da varanda, de rosto franzido e olhos fechados, esperei por intermináveis segundos até que o carro parasse, e justamente nessa hora, ouvi um barulho seco, compacto, vindo do telhado, como se um saco de farinha tivesse sido jogado ali. Olhei para cima e do lugar onde me encontrava vi apenas alguns dedos transpondo a quina da calha. Peguei rapidamente a escada e subi, na tentativa de salvar aquela criatura, porém, em cima do telhado só havia um braço acompanhando aqueles dedos inertes.

          Desesperado, olhei para a rua e gritei, chamando as pessoas que pareciam procurar algo ao redor de um corpo já coberto com folhas de jornal.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 

Capa de cordeiro

            Além de sangue, sistema vascular, músculos estriados, plexo braquial, artérias, pleura diafragmática, brônquio principal, pericárdio fibroso e grandes vasos, o coração guarda também a capacidade de nos iludir com relação ao amor, pois, o amor é traiçoeiro; astuto, falso, matreiro. Esconde a pele do lobo numa capa de cordeiro.

domingo, 10 de dezembro de 2023

 

O filme

Imagino-me em um filme, eu o ator, o criador, o diretor. Fácil viver lá dentro. Lá eu não tenho medo, eu represento o medo. Eu posso estar andando nos becos mais sórdidos e, de repente, ser hostilizado por um grupo de viciados. Minha reação pode ser infinita: posso me impor, lutar até a morte, posso usar como arma a retórica, depende do texto. Posso sair dali sem que ninguém me veja, posso até morrer que nada vai mudar. Eu não vou morrer mesmo! No fim eu troco de roupa e vou-me embora.

          Se não existisse a morte nós viveríamos eternamente dentro de um filme, sem medo, sem angústia por sabermos que ela não estaria nos espreitando, com aquela sua roupa preta e a foice em uma das mãos. Mas sejamos sinceros: o nosso tédio seria bem maior.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

 

As mascaras

“As máscaras caíram. Ninguém mais consegue se disfarçar. Cada um é o que é e nunca mais agirá de forma conveniente com suas mentiras.”

Isso seria o princípio de algo verdadeiro que jamais acontecerá. As máscaras jamais cairão, e as pessoas, assustadas, sempre as usarão como uma forma de se protegerem dos outros e de si próprias. Eles não tem coragem de se aceitar como verdadeiramente são, e as máscaras os ajudam a ser como os outros, que não são o que são.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

 

Resistência

Ela já se foi, só eu permaneço nesta sala imensa, irritado com o eco de pequenos barulhos que faço ao movimentar a perna para evitar dormência. Estou sentado no chão a contemplar algumas contas do colar que partiu quando eu, na hora da agressão, tentava me defender. São falsas contas, como já é falso, há muito tempo, o nosso relacionamento.

           Eu já não me importo com as suas indiscretas e infrutíferas tentativas de envolver-se com a juventude, porém, a juventude tenta, discretamente, envolver-se comigo. Isso faz com que ela adquira, nas suas expressões e atitudes, um desejo de esmagar o mundo, uma necessidade de destruir o belo, uma fúria incontida, que hoje culminou numa cena patética, fazendo com que os convidados, inclusive o pivô da discussão, que eu espero rever em breve, saíssem discretamente, deixando-me aqui sentado, tentando gastar, até a última gota, a resistência inata do ser humano de tomar atitude quando o assunto é a separação.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

 

Carência

Um tiro certeiro acertou um certo sujeito chamado João. João caiu de bunda no chão, mas o tiro que levou não acertou sua bunda, e sim, sua mão. O tombo foi de susto e João, ao se levantar, pegou a mão com a outra e fez uma careta. Como não havia ninguém olhando, parou de fazer careta e levou sua mão para o hospital.

Só faltava mancar de tanta carência afetiva. Sua mãe não estava lá para dar-lhe um beijinho e afagar-lhe os cabelos. Seu pai não estava lá para enfiar-lhe a mão a cara, dizendo que homens não choram. Sua mulher não estava lá para fazer um escândalo e desmaiar ao se deparar com aquela mão ensanguentada.

           E lá ia João, pensando... Pensando e mancando, mancando e chorando, chorando e s’amando, s’amando e sarando, sarando e se lembrando de que sarado a vida é outra, mais dura, mais difícil de se levar, mais difícil de aguentarrrrrrrrrrrrrgh.

domingo, 26 de novembro de 2023

 

A responsabilidade

A responsabilidade é uma merda. É claro que todos nós devemos estar atentos para não abusarmos da falta dela. Tirando as pessoas que se escondem sob uma capa de responsabilidade para executar as maiores falcatruas, a responsabilidade é castradora. Quanto mais eficiente, quanto mais centrado em coisas inúteis, mais responsabilidade você adquire, e isto não o deixa se movimentar.

          Para a maioria das pessoas a responsabilidade é o céu e a falta dela é o inferno. Já virou lugar-comum dizer que o inferno é melhor do que o céu, mas, Deus que me perdoe: viva a falta de responsabilidade!

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

 

Desconforto

            Na parede, amarelado sob uma moldura rota, o meu retrato, quando jovem, inspira mais respeito do que esse caco na cadeira de balanço, a forçar a perna num movimento ritmado, como se amenizando a eterna estagnação existente na casa. Até a mosca, que entrou fazendo três ou quatro visitas de inspeção em pontos distintos da sala preferiu o caco ao retrato emoldurado, causando-me um profundo desconforto.

sábado, 18 de novembro de 2023

 

Os velórios

            Os velórios me deprimiam. O defuntos, nem pensar! Não os encaravam. Eles eram sóbrios, superiores. Sabiam mais do inimaginável do que eu poderia imaginar. Hoje eu me dou com eles. Meus amigos estão partindo e a cada despedida eu me sinto mais à vontade. Passei a me encarar ali. Logo será a minha vez, e sempre me pego arrumando o colarinho de um ou outro, como se cuidando da minha aparência para partir com dignidade.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

 

Máquina enferrujada

É... O mundo vai girando e a gente girando junto. É uma imensidão desconcertante, assustadora o universo, e se a gente estiver sem dinheiro para pagar as contas, esse mundo, essa imensidão perde por completo a importância. A gente, na maioria das vezes, aqui nesse mundinho insignificante, sem dinheiro para pagar as contas não se assusta com a imensidão do universo.

            A máquina está enferrujada, não funciona, e os bichos da ferrugem atacam, atacam, e você lá, deitado com as mãos apoiando a cabeça sobre o almofadão, olhando para a imensidão do universo, sem ao menos perceber que ali existe um universo para ser observado.

sábado, 11 de novembro de 2023

 

                                                        Descendência           

            Eu não tenho descendência de rio no quintal. Tenho de área de serviço. Eu não tenho descendência de árvore. Tenho de cama colorida. Eu não tenho descendência de concurso de cuspe, concurso de mijo, nem de pula toco. Tenho de Nintendo. Minha descendência é concreta, não abstrata.

domingo, 5 de novembro de 2023

 

O carregador oficial

O bêbado tinha um carregador. O carregador era sério, devia ser seu amigo ou parente. O bêbado gesticulava ao falar. Ninguém entendia seus gestos, nem suas palavras. O carregador era paciente e parece que cumpria uma obrigação. Eu não sabia se aquele era o carregador oficial do bêbado, mas ele estava desempenhando aquela função com muito esmero. Na sacada, a mulher recebeu o bêbado e o levou para dentro, como se leva algo difícil de carregar.

 O carregador foi-se embora. A mulher do bêbado deve ser o carregador oficial.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

 

Dura Realidade

            Tomado por uma grande necessidade de liberdade, saí, atravessei a cidade e me situei num campo florido, até que um enxame de abelhas levou-me para a praia, deixando-me a contemplar pernas roliças, seios firmes e bem delineados de lindas mulheres, e no momento em que essas mulheres começaram a tirar os seus biquínis, tentando,  delicadamente, esconder o sexo, apesar de seus olhares insinuantes, e eu já sentindo um princípio de ereção, ouvi o barulho da portinha se abrindo e vi a panela com um caldo marrom sendo jogada cárcere adentro, trazendo-me de volta para a minha dura realidade.

domingo, 29 de outubro de 2023

 

Show aéreo

Era um show acrobático aéreo. Os aviões faziam barulho, e eu, amedrontado, segurava a barra da saia da minha mãe. O show dos urubus era bem melhor. Eu costumava me deitar na grama para voar com eles. Eles bailavam nas alturas sem bater asas. Pareciam estrelinhas pretas no céu azul, e quanto mais altos, menores ficavam. Eu os admirava, até o dia que alguém perguntou o que eu seria quando crescesse. Eu respondi urubu. Depois, não aguentei a pressão. Também não expliquei nada.

Agora ali, olhando os aviões, segurando a barra da saia da minha mãe, eu queria estar vendo urubus. Urubus não fazem barulho, nem caem.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

 

Dilúvio

A maioria de nós quer chorar e não consegue. Se acontecesse de todos chorarem ao mesmo temo, as lágrimas inundariam o mundo, e talvez um grande momento de sensibilidade superasse os momentos de aflição em que vivemos. Eu não consigo chorar, portanto, estou predestinado à aflição, mas não fico aflito aqui, quieto no meu canto. Tento compartilhar a minha aflição com todas as pessoas que me cercam. 

            Elas que me perdoem!

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

 

Velório

Quanto mais os anos passam, mais mortos você visita, e é claro, a gente sempre torce para não ser visitado. Quando eu estou lá, no velório, visitando um desses mortos, sinto que ele apresenta-se de uma forma muito esnobe, ali deitado, não participando de nada ao seu redor. Às vezes eu sinto que eles levam certa vantagem sobre as pessoas que ali estão, pois, já têm a experiência da morte e as pessoas não. Eles já podem estar envolvidos com outras maneiras de ser, ou com o nada absoluto, com o descanso total, com o descanso que não tem graça.  De certa forma eu prefiro estar ali vivo, adquirindo mais experiência em vida, não sei para quê.

            Esta é a minha vantagem.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

 

Dura realidade

A musica que eu ouvi era antiga, muito antiga, e me remeteu ao passado. Na época em que eu ouvia essa música eu era muito feliz e, imediatamente, senti toda aquela felicidade.

           Essa sensação agradável, como se a vida voltasse a ser o que era, durou muito pouco, e apesar de ter me remetido a um maravilhoso lugar do passado, não foi capaz de me segurar lá, devolvendo-me para o poço escuro e silencioso onde eu me encontrava antes de ouvi-la.

domingo, 15 de outubro de 2023

 

Del

            Quando criança eu não queria ser visto, e sempre que isso acontecia, tapava os olhos com as mãos. Assim protegido ninguém me via. Ao tirar as mãos, tudo voltava ao que era, e no tempo em que eu me ausentava, minha imaginação ia para bem distante. O sentimento de liberdade ocasionado pela minha ausência me proporcionava um grande prazer. Essa era a tecla Del da minha infância.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

 

O palhaço

O circo está armado. A trapezista, com as mãos banhadas em talco, espera ansiosa pelo início do espetáculo. O palhaço retoca a maquiagem. Já colocou sua gravata. Daqui a pouco enfrentará um trânsito infernal até o picadeiro. A mulher da corda prepara as crianças para a escola. O palhaço, em breve entrará na jaula dos leões. Ele ajuda o domador, e, certamente, tomará algumas chicotadas.

            Mais um dia se inicia. Este é um retrato do nosso povo...

sábado, 7 de outubro de 2023

 

Uma tela em branco

Uma tela em branco no computador, em determinados momentos, é de matar qualquer um de pavor. É como uma multidão atenta, interrogativa, esperando você falar, e você olhando apavorado sem saber o que dizer. Uma tela em branco, no computador, só pode ser comparada a uma tela de pintura em branco, esperando as primeiras pinceladas. As duas causam o mesmo sofrimento. Uma tela em branco no computador não passa de uma tela em branco, e o computador não passa de uma máquina que, sem os nossos comandos, jamais conseguirá se movimentar.

A tela está lá, vazia, esperando que você coloque o que quiser. Que seja um “puta que os pariu” ou a descrição de uma flor. Você pode falar mal de alguém, falar de coisas boas ou ruins, pode mentir descaradamente, tentar escrever em toda a página, como estou tentando fazendo agora, ou pode falar tudo com apenas três palavras. Quando você pensa em falar tudo com apenas três palavras, isto vira um desafio, uma obsessão, e você começa a tentar imaginar quais palavras seriam essas três, até descobrir que poderia ser: “Estou com fome”, e sair correndo para comer um sanduíche.

Voltei!

          Uma tela de computador em branco assusta, deprime, desafia. Pode causar grande alegria quando as ideias começam a brotar ou uma grande frustração quando nada acontece.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

 

A fragilidade do desejo

Ele era estagiário, ela, chefe de setor. Ela procurava, ele ardia. Ele desejou aquele corpo de sereia madura, ela, aventura. No motel ele desfez-se das vestes e expôs sua nudez sem constrangimento. Ela se despiu em parte.

Ele, da piscina, passou a observá-la: canelas finas, ancas largas, diferentes das de sua preferência nas revistas eróticas. Sob o sutiã transparente, os seios, de aréolas e bicos escuros, tentavam escapar. Aquele modelo, de qualidade dúbia, não era o de sua preferência.

            Ele mergulhou, eternizando os segundos. Ela tentou, em vão, solidificar o vento. Ele se desculpou. Ela pagou a conta. Ele voltou para as suas revistas.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

 

Mundo maravilhoso

O mundo é uma maravilha. Tirando as coisas que atrapalham, é uma maravilha. As árvores, os pássaros, todos os animais, enfim, tudo é maravilhoso. Uma cidade bem planejada, uma boa qualidade do ar para todos, educação e qualidade de vida para que os ânimos não se exaltem, boas condições de saúde, muita confraternização e amizade entre todos é que fazem desse mundo uma maravilha.

Às vezes alguém desanima, acha que o mundo não é tão maravilhoso como todos acham. Esses são os pessimistas que, só porque algumas árvores são cortadas, algumas fábricas emitem gazes tóxicos na atmosfera, alguns pássaros e abelhas morrem intoxicados, algumas escolas não cumprem o seu papel de ensinar e educar, e alguns hospitais não dão o mínimo de condições necessárias para que um cidadão tenha um tratamento adequado, não vêm que o mundo é maravilhoso.

        Quem não vê isso são os alienados que, se gastassem um pouco do seu tempo informando-se, atualizando-se, assistindo a um bom programa de televisão aos domingos, entenderiam que realmente o mundo é maravilhoso.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

 

Estamos em obra

            Estamos em obra, eu e a poesia. Escrevemos em um dos lados da cabeça (sem pena) para que a dispersão não se intrometa. No quarto escuro, só o barulho do ventilador de teto e as ideias indo e vindo como transeuntes apressados, e apesar de toda essa movimentação, não consigo coerência para concluir com dignidade os meus devaneios.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Pobre

            Uma pessoa nasce pobre. Por nascer pobre não se alimenta direito. Não se alimentando direito, não consegue se concentrar nos estudos como uma pessoa que se alimenta direito. Não estudando não terá uma profissão decente que lhe garanta a sobrevivência. Consequentemente continuará pobre. Provavelmente terá filhos que nascerão pobres, não se alimentarão direito; talvez nem concluam o Ensino Fundamental, e fatalmente terão outros filhos.

       Enquanto isto os artistas se autopromovem, os empresários disputam, os políticos mentem, os líderes religiosos induzem, as revistas manipulam, os dirigentes se dirigem, a sociedade se cala, os padres tomam chá e os pobres limpam a cidade dos restos jogados nas latas de lixo.

 

domingo, 17 de setembro de 2023

 

A cassiterita

A cassiterita é um nome que costuma aparecer na cabeça da gente sem que se saiba sequer o seu formato, a sua cor, sua nomenclatura. É claro que depois se descobre que é um mineral óxido de estanho (SnO2), geralmente opaca, sendo translúcida quando em pequenos cristais, com cor púrpura, preta, castanho-avermelhada ou amarela. Cristaliza no sistema tetragonal, com hábito prismático ou piramidal.

            Mas quando a gente se assusta, está com isto na cabeça, porque a cabeça, às vezes fica vazia, e vai dando aquele branco, e não vai saindo nada, e vai dando uma raiva porque todo mundo deveria ter boas ideias o tempo todo, e não somente quando está fazendo uma caminhada numa trilha, sem caneta e sem papel, e dá vontade de escrever com um graveto numa folha de árvore. Aí você não escreve e já em casa tenta desesperado lembrar-se do que era, pois aquela ideia era excelente e agora, no conforto do lar nada acontece além da palavra “cassiterita”.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023


 Filosofia barata

            O pingo da chuva, logo não existe como pingo, a não ser que a gente tente, sem êxito, acompanha-lo pela enxurrada. O pingo da chuva é uma ilusão, uma confusão. Não entendo mais nada. Vou abrir o guarda-chuva.

domingo, 10 de setembro de 2023


 O lobo encantado

É, parece até mentira, mas um dia chegou uma fada, não se sabe de onde, e encantou o lobo. Ele não sentiu nada quando a fada bateu a varinha nas suas costas, nem a ouviu dizer que ele seria bom e generoso para com os outros animais. Apenas viu algumas estrelinhas coloridas à sua volta e estranhou a sua reação diante da fada ali ao seu lado. Em outras circunstâncias ele teria avançado e talvez resolvido, ali mesmo, o seu problema de alimentação do dia.

Saiu andando calmamente e, ao ver um coelho, não sentiu vontade de caçá-lo. Foi em sua direção, e o coelho, de tanto medo, ficou paralisado, sem forças para correr. Então o lobo disse: 

- Aonde vais meu bom coelhinho?

Os outros animais assistiam a tudo e não acreditavam no que viam.

O coelho abaixou a cabeça e disse com voz baixa:

-Vou ao Sítio do Lago Claro, comer cenouras.

-Você não deve fazer isto, meu filho - disse o lobo - O Sr. Freitas trabalhou muito para plantar as cenouras. Você não pode chegar lá, assim sem mais nem menos, e comer as suas cenouras. Coma essas que estão à sua frente, e comporte-se, meu querido.

            Neste momento, apareceu na frente do coelho uma tigela com lindas cenouras, e o coelho foi logo experimentando uma para ver se realmente era verdadeira.

Uma ovelha disse agressiva:

-Lobo, este pasto está uma porcaria. Olha o tamanho do capim! - e logo o capim cresceu sem que o lobo precisasse dizer uma palavra. A galinha queria milho e minhoca, e logo foi atendida. Até o Sr. Freitas, aproveitando da generosidade do lobo, pediu uma casa nova para o sítio, com antena parabólica e piscina.

O tempo foi passando e os animais foram perdendo completamente o medo que sentiam do lobo, e passaram a agredi-lo. Se em algum lugar do pasto a grama amarelasse, um pouquinho que fosse, uma ovelha ia lá, pegava o lobo pela orelha e o trazia para mostrar, arrastando o seu focinho na grama para que ele, imediatamente, a fizesse ficar verde novamente. Quando a TV saía do ar, mesmo que o problema fosse da rede de transmissão, lá ia o Sr. Freitas com o seu chicote - coisa que o lobo mesmo fizera aparecer na sua mão - procurar o lobo para consertar. Ninguém demonstrava gratidão pelos serviços prestados pelo lobo, e se acostumaram tanto com as benesses proporcionadas pelo lobo que ele já nem tinha tempo de dormir.

Quando alguns animais, os mais espertos, começaram a usar o lobo para conseguir vantagens sobre os outros, provocando uma brigalhada sem precedentes na história do Sítio do Lago Claro, a fada voltou a aparecer. Bateu novamente a varinha nas costas do lobo e disse, sem que ele ouvisse:

-Infelizmente eu errei. Você vai voltar a ser mau para que os outros animais voltem a serem bons.

O lobo não sentiu nada e só viu umas estrelinhas coloridas à sua volta.
Assim que as estrelinhas sumiram, ele avançou sobre a fada, que desapareceu como fumaça.

Então ele, sorrateiro, tomou os rumos do sítio, escondendo-se entre as folhagens para não ser visto. Estava com muita fome e não se lembrava de nada do que havia acontecido.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

 

Devaneio

Ele ficou olhando para a tela do computador por alguns minutos, e sem o que dizer, escreveu sobre um cachorro manco que não conseguia urinar no poste e foi inchando, inchando, até estourar de tanta urina. Depois escreveu sobre a calça no varal, balançando de um lado para o outro, e o gatinho branco tentando alcançá-la, até conseguir e ficar com a pata presa, desesperado, tentando se desvencilhar, e o vento batendo, e o gato lá embaixo, tentando, tentando. Escreveu sobre a mulher que todos os dias passava pelos seus pensamentos, com aquela saia engomada e aquela blusa cor de vinho manchada de azul.

Sobre o baloeiro escreveu também, sentado na praça, sem ao menos saber que estava ali, pernas cruzadas, uma das mãos apoiada no banco de mármore, segurando os balões, e a outra cofiando a barba grisalha. Escreveu sobre os barulhos da praça, da pipoca estourando no carrinho, lá na esquina, e o cheiro chegando cá perto do banco do baloeiro, Escreveu também sobre os meninos saindo da escola, jogando as mochilas para cima, chutando uns aos outros, as beatas enroladas nos seus véus pretos indo para a missa que só começaria ao anoitecer.

Escreveu sobre os pombos cometendo o pecado mortal de cagar na igreja, sem contar o pecado que não tem classificação no livro das coisa ruins do céu que é o da prática do ato sexual no caibro da entrada principal da igreja, mas logo foi se desinteressando por aquilo tudo e desligou o computador sem salvar o texto.

domingo, 3 de setembro de 2023

 

A linha

Foi numa época, quando eu me encontrava no auge da lucidez, e as pessoas, talvez por não me entenderem, me tratando com desdém, que eu descobri que o raciocínio tem uma linha. Sabia o que era, mas não sabia explicar.

O raciocínio tem uma linha. Você vai seguindo aquela linha, de repente, sai dali e pega outro caminho, deixando para voltar depois, e desse caminho você vai para outro, para outro, para vários outros, e depois volta para a linha principal. Foi nessa época também que eu comecei a não admitir que as pessoas saíssem da linha principal e conversassem comigo fazendo de uma linha secundária qualquer a principal. Eu as entendia perfeitamente na linha principal, por que, então, a secundária?

Para tentar me organizar passei a escrever sobre a linha principal e as secundárias. Escrevia até caminhando pela rua, e ia deixando as folhas para trás. Queria entender o raciocínio e queria também que o raciocínio e as pessoas entendessem a minha lógica.

É claro que ninguém entendeu nada, e como sempre acontece, as pessoas resolveram me ajudar, como se eu, e não elas, precisasse de ajuda. Minha fragilidade não permitiu que eu reagisse, e hoje, depois de muito tempo internado, já aceito docilmente que as pessoas passeiem livremente pelas linhas do meu raciocínio.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

 

                                           O Celestial Sorriso da Ira

            Mascando sal, subi a ladeira até o fundo do poço, encontrando pedras moles que espremi tirando gotas de madeira. Distraído, deitei-me num campo coberto de formigas e fiquei a pintar jabutis. O sol queimava-se no belo horizonte (argh!) e eu me aqueci com um cobertor de vidro. Quando o pássaro chegou, com o seu lindo bastão de calha, tive de atirar, matando-me para a sorte. Sem coragem de me penitenciar, contraí um dos meninos e corri até onde o alcance da vista superou, obtendo informações da jovem quadrúpede. Mais tarde, quando as bolhas se desfizeram em advertências, suportei todas as inconfiabilidades, até pisar em uma cabeça de mármore gelatinosa. Foi assim que o tubo de sabão de pedra escorregou entre a vasta cabeleira de um eunuco, trazendo para o meu lado o arrependimento de não ter sabido dominar o impulso da degustação. Quando a brasa da manhã ardia com a lua, mastiguei dois pedaços de lente embaçada e me vi trincado entre a necessidade de expandir e o desejo de desvirtuar. O sentido de observação se aprimorou, e eu consegui saltar o riacho, mas logo me deparei com dois demônios brancos, que me propuseram: um, uma orla semipoluída e outro um arquétipo de nó. Tentando entender melhor aquele trovão, cortei uma das orelhas de um crocodilo e costurei-a no rabo de uma cotovia, que gritou até estilhaçar a já sensível camada que protege a terra das tormentas boreais. A partir de então, só quem não se dava com cadeira de balanço, conseguia argumentar com o celestial sorriso da ira. Quanto mais se eletrificava o desejo de reagir, mais correlação de sulco escorria pelos dedos calosos. A bolha, agora, estendia-se pelo travesseiro e dominava grande parte do esôfago. Nada que se tentasse, com relação ao prosaico mundo das traineiras, seria compensador, uma vez que o manicômio estava restrito a benditos eclesiásticos.