Eu
Quantos
sou? Agora sou eu. Sou também o eu que já fui, e o que serei. Tudo isso num eu
só. Sou sempre vários eus agora.
Diferenças
Tudo
o que é diferente assusta. Pensar diferente assusta. Agir diferente do
assustado assusta. Ser de uma cor diferente, sentir prazer diferente, optar por
crenças diferentes, falar ou se calar de maneira diferente também assusta.
Mas diferente de quê? Diferente de quem está julgando. Como a grande maioria está sempre julgando da mesma maneira, a manada segue com seus cabrestos e balangandãs coloridos, excluindo dos seus grupos os que não usam os mesmos cabrestos. As pessoas só não se assustam com o fato de serem completamente diferentes de todos os outros seres humanos e de todos os outros seres do planeta e do universo.
As ferrugens das
coisas
Acordei inseto de aranha. Tentei me desvencilhar e quanto mais
dava braçadas, mais me afundava em teias. O ar escasso me sufocava e o medo do
isolamento me transformou em cuspe de sapo. Quando dei por mim, já estava a
caminhar numa avenida, e como num sonho, tentava, inutilmente, evitar o olhar
de transeuntes assustados e curiosos, como se dissecando as carnes e pelos do
meu corpo nu. Nesse momento eu me entreguei às ferrugens das coisas.
Conversa Com Fantasmas
Hilário
caminhava gesticulando, conversando com fantasmas, e ao perceber a comicidade
de seu comportamento, ao falar alto e dar braçadas, como se conversando com
alguma matéria sólida ao seu lado, imediatamente passou a batucar na perna,
fingindo acompanhar a música que passara a cantar baixinho, porém, logo voltou a
conversar, e os fantasmas, não aguentando aquela atitude insólita, se
debandaram, deixando-o apavorado no meio da avenida diante de um enorme
caminhão que se aproximava em alta velocidade.
Infelizmente o Ziraldo se foi. Que descanse em paz.
Coloco aqui um texto que o Ziraldo escreveu sobre a minha arte, que me deixou muito honrado:
Sou um velho admirador do Nerino, do seu talento, da sua
inventiva, da originalidade do seu trabalho. O Nerino é muito, muito criativo.
A primeira vez que entrei em contato com ele foi na época do “Palavras”, a
revista que Minas fez para o mundo mas desistiu no caminho. Minas não está
interessado em conquistar o mundo. Mas o Nerino está. E aí, fizemos na revista,
quatro páginas sobre seus desenhos de humor e suas frases de grande efeito.
Agora, descubro que o Nerino pinta e sua pintura é absolutamente pessoal, só
parecida com ele mesmo, com seus textos
que, vocês precisam ler, são de maior qualidade. Acredito que há uma
forte dose surreal – no sentido original, franco-espanhol do termo - no seu trabalho, mas não o coloquemos sob
rótulos.
A pintura – ou o trabalho todo – do Nerino é desconcertante,
impactante, original, diferente entre nós, no nosso tempo. Deixa o Nerino criar.
A arte que se faz em Minas vai ganhar com isso.
A arte vai ganhar com isso.
Tudo se resolverá da pior forma
Pássaros
despencam sobre o asfalto caudaloso.
Crianças
brincam com vísceras de animais de estimação.
Beatas
queimam crucifixos para aquecer a sopa.
Políticos,
desesperados, se penitenciam com correntes de ferros enferrujados.
Cão
feroz se rende ao carinho de um gato.
Crianças
se surpreendem diante de suas súbitas bondades.
Ninfetas,
insatisfeitas, se organizam para lutar contra a apatia dos idosos babões.
Bebezinhos chorões calam-se, causando insegurança a mães aflitas.
Gemidos angustiantes determinam que, apesar de as coisas não estarem funcionando de acordo com os padrões normais de funcionamento, tudo se resolverá da pior forma.
O voo solitário
O
passarinho, acima do final da árvore, voa solitário. Talvez lá em cima ele
cante, mas o seu canto desapareça para nós. Deixa o canto desaparecer, contanto
que ele permaneça a voar para que a gente voe com ele. Ao entardecer, depois de
encantar o céu, ele sempre volta a encantar a árvore.
Estava brotando uma poesia a
minha cabeça. Eu não sabia do que se tratava, mas sabia que era um surto. Então comecei a escrever o que estava lá dentro para realmente escrever o poema
Começou assim:
surtei!
assim
que sá
de fé
surtei
pra quem
disser
que é
não sei
Sem te falar
só que
surtei
eu sei
brinquei
cantei
falei
pensei
gostei
eu sei
suei
surtei
tentei
falei
só que
surtei
surtei!
assim
que vi
consenso
eu sei
não vou
sentir
e não
gostei
a denegrir
pavor
surtei
com fé
sofisticado
hei
de não
pensar
amor
surtei
pra redigir
fantasmas
sei
e violar
cabeças
hei
eu sei
surtei
tentei
fugir de mim (sair de mim)
eu sei
As asas
da imaginação
O
ovo é a primeira casa da ave. Nós não damos importância para o que está dentro
desse envoltório protetor. Ali há uma vida, e nós, displicentemente, a abortamos,
jogando-a na frigideira.
Eu, como os pássaros, já estive dentro de uma espécie de ovo. Esse ovo foi o útero da minha mãe. O ovo é um útero com vida própria. Um útero afastado da mãe. O meu ovo era aconchegante, andava pela casa comigo, tinha sentimentos, passou tudo isso para mim. O ovo do pássaro é aquecido pela mãe, e depois de algumas semanas, o pássaro, que está sendo gerado ali, sente uma necessidade incontrolável de se libertar, dando bicadas para todo lado. Sai de lá cego, e depois de um certo tempo, se joga, sem noção do que virá, e voa. Eu também costumo me jogar, voando com as asas da minha imaginação.
Pernas de formiga
De
volta ao útero
Fui ao otorrino. Estava com dor de ouvido. Ele colocou água quente lá dentro para dissolver a cera. Isso foi uma das melhores sensações que eu senti. Foi como se eu tivesse voltado ao útero materno. É claro que eu não me lembro da paz e segurança que deve ser o útero materno, mas senti um calor aconchegante, Inexplicável, naquele momento. Quando eu saí do consultório, Já andando entre as pessoas na rua, olhava encantado para tudo com a sensibilidade e a curiosidade de quem acabara de nascer.
O sonho eterno
Que bom seria se pudéssemos viver eternamente em um sonho. Andar pela rua vestido ou nu e não se espantar com o julgamento alheio. Encontrar algum parente falecido e conversar com ele sabendo que ele está morto. Mudar de cenário a cada momento. Mostrar indiferença diante das situações mais escabrosas. Seria divertido a sensação de liberdade plena. É claro que vivendo em um sonho, terÍamos também nossos pesadelos, e o pior: vivendo eternamente em um sonho, após um pesadelo, jamais acordarÍamos para sentir aquela sensação agradável e libertadora por ter acordado.
Perdi a validade
Eu não sou de lágrimas, lamúrias, lástimas. Sou como uma estaca que não sente o peso da marreta e vai se afundando lentamente. Apesar de ter passado toda a vida sentindo-me assim, hoje rendi-me às lágrimas, lamúrias e lástimas. Eu, uma gota de suor, um risco de lápis sem ponta, uma folha seca no bueiro. Eu sou uma lâmpada apagada. Perdi a validade. PQP.
A birosca
O bar, o seu dono e todos os seus frequentadores eram da
favela. O dono do bar gostava de Mozart e tinha uma reprodução de Toulouse
Loutrec na parede. Por dentro do balcão, feito com restos de madeira de obras
da cidade havia alguns livros que o dono do bar gostava de folhear. Ao anoitecer
ele servia cachaça, e salgadinhos para fregueses indiferentes, que sequer
olhavam para a reprodução de Toulouse Loutrec.
O dono do bar também não se interessava pelas conversas dos seus fregueses, porém sentia-se ofendido quando carregava na maquiagem para agradar e era tratado com a mesma indiferença que os frequentadores dispensavam à obra de Loutrec.
Uma gota de
orvalho escorre sobre a folha e atinge uma formiga. O impacto a imobiliza. Logo
ela se recompõe. Olha para cima maldizendo as árvores, as folhas, o orvalho e
desiste de carregar a folha. Segue outro caminho. Resolve se aventurar pela
floresta. Decide não mais trabalhar como uma escrava, engordando rainhas
fanfarronas, protegendo ovinhos mimados que logo se transformarão em escravas
carregadeiras.
Tudo isto é muito bonito, mas é claro que nunca vai acontecer. Só acontece na minha imaginação, quando tento, olhando uma formiguinha carregando uma folha, libertá-la da escravidão.
Faxina interna
Apareceu uma dúvida e eu tentei me reorganizar, fazendo uma faxina no meu cérebro: juntei causas e consequências, limpei falsos sossegos, podei insignificâncias, rasguei insatisfações reprimidas, dei uma grande atenção às insuficiências íntimas, desprezei os impróprios e custei a me livrar dos despropósitos. Depois que estava quase tudo limpo, saí flanando pela noite à procura de novas dúvidas.
O meu coração
O meu coração é incansável e trabalhador. Funciona há vários anos, sem descanso, sem interrupção. Os corações de todos funcionam da mesma forma, mas o meu é especial. O meu coração é bom, e eu sou muito recriminado por isso. Por mais que eu queira, não consigo endurecer meu coração. Ele é mole, flexível, compreensivo, carinhoso e eu sei o preço que pago por ser assim.
Vida ingrata
Essa vida é muito ingrata. Nós, os poderosos, acumulamos
grandes fortunas e no final fica tudo para os outros. É sempre uma grande
alegria conviver com o dinheiro, com o poder, comprar estabilidade, pessoas,
bens materiais, mas é, ao contrário, desanimador morrer e ter que começar tudo
do zero na outra vida. Se é que existe outra vida!
É duro constatar, mas o certo é que o dinheiro pode comprar
um bom caixão, mas não garante um bom lugar no céu.
Dois baques
O passarinho cantava no galho: Piiiiiu, piiiiu...,pipipipipipiipipruuuuuuuu
Piiiiiu, piiiiu...,pruuuuuuuuupup utruuuuuuuu... piupiupiupiupiupiupiupruuuuuuuuu...
Um
homem vinha andando, mascando fumo, espingarda debaixo do braço, chapéu de
couro surrado, olhando para o chão. Andava sem fazer barulho, com a intenção de
chegar mais perto para matar o passarinho. De repente:
RUAAAFF...PLURT... Cuspiu! O passarinho parou de cantar assustado e voou para
longe. Enquanto isto as formigas, sôfregas, almoçavam a cusparada.
O homem ainda tentou sacar a arma,
desistindo logo em seguida. Coitado, nesse dia ele sofreu dois baques: não
matou o passarinho e ainda alimentou as formigas que tanto detestava.
Carências
Uma velhinha, acompanhada por duas pessoas, saía de um
restaurante. Ela olhava para o vazio e aquela cena me deprimiu. As pessoas
geralmente acham que o velho incapaz precisa sair de casa para se distrair. Não
é verdade. O velho incapaz quer carinho dentro de casa, e de preferência, que
não saia nunca, mas que o carinho que receba o coloque, de uma certa forma, em
contato com o mundo.
As pessoas oferecem o passeio com tanto entusiasmo que os
velhos não são capazes de negar. Logo nós seremos os velhos incapazes e
sentiremos, na pele, a falta de noção de quem só quer ajudar.
Coleira ante pulgas