terça-feira, 29 de agosto de 2023

 

                                           O Celestial Sorriso da Ira

            Mascando sal, subi a ladeira até o fundo do poço, encontrando pedras moles que espremi tirando gotas de madeira. Distraído, deitei-me num campo coberto de formigas e fiquei a pintar jabutis. O sol queimava-se no belo horizonte (argh!) e eu me aqueci com um cobertor de vidro. Quando o pássaro chegou, com o seu lindo bastão de calha, tive de atirar, matando-me para a sorte. Sem coragem de me penitenciar, contraí um dos meninos e corri até onde o alcance da vista superou, obtendo informações da jovem quadrúpede. Mais tarde, quando as bolhas se desfizeram em advertências, suportei todas as inconfiabilidades, até pisar em uma cabeça de mármore gelatinosa. Foi assim que o tubo de sabão de pedra escorregou entre a vasta cabeleira de um eunuco, trazendo para o meu lado o arrependimento de não ter sabido dominar o impulso da degustação. Quando a brasa da manhã ardia com a lua, mastiguei dois pedaços de lente embaçada e me vi trincado entre a necessidade de expandir e o desejo de desvirtuar. O sentido de observação se aprimorou, e eu consegui saltar o riacho, mas logo me deparei com dois demônios brancos, que me propuseram: um, uma orla semipoluída e outro um arquétipo de nó. Tentando entender melhor aquele trovão, cortei uma das orelhas de um crocodilo e costurei-a no rabo de uma cotovia, que gritou até estilhaçar a já sensível camada que protege a terra das tormentas boreais. A partir de então, só quem não se dava com cadeira de balanço, conseguia argumentar com o celestial sorriso da ira. Quanto mais se eletrificava o desejo de reagir, mais correlação de sulco escorria pelos dedos calosos. A bolha, agora, estendia-se pelo travesseiro e dominava grande parte do esôfago. Nada que se tentasse, com relação ao prosaico mundo das traineiras, seria compensador, uma vez que o manicômio estava restrito a benditos eclesiásticos.

sábado, 26 de agosto de 2023


Eu matei uma formiga

Eu matei uma formiga. Não me senti forte, nem poderoso; aliás, nesse momento, nem pensei no ato de estar matando uma insignificante formiguinha, mas logo essa atitude irracional me levou a pensar no ser humano, na sua necessidade de adquirir poder, na sua capacidade de destruir o belo.

As coisas são tão perfeitas, por que nós resolvemos acabar com tudo? Quando o homem descobriu o verbo, o fogo, a roda, não imaginava que isso, um dia, faria dele um monstro poderoso, capaz de destruir tudo, inclusive a si próprio. A partir destas descobertas o desenvolvimento humano, a evolução, o seu progresso tecnológico foi todo adquirido através de guerras e destruições. O tacape, a flecha, o canhão, o avião, os foguetes, tudo foi inventado pelo homem com a intenção de dominar outros homens.

Eu, como resultado de tudo isso, fiquei olhando aquela formiga caminhando sobre a escrivaninha de tampo de vidro. Ela rodeou o teclado, passou sobre a agenda preta e veio em minha direção. Eu estiquei o dedo indicador da mão direita, posicionei-o um pouco acima e desci com força esmagando-a no vidro.

Só depois de praticar esse ato covarde foi que eu percebi que viver é uma aventura para todos nós, e eu, irracionalmente, acabei com a aventura daquela indefesa formiguinha.

É claro que ninguém vai querer aceitar isso com naturalidade, mas viver é uma aventura também para uma barata.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

 

Insignificância

Você já parou para pensar no quanto insignificante você é? Não estou dizendo no seu quarto, na sua casa, na sua rua, no seu bairro, na sua cidade, no seu estado, no seu país, no mundo.

            Estou dizendo no universo. Você não é nada, não sabe de nada. Sabe aquela verdade absoluta que você sempre defendeu com intransigência, como fato consumado? Não é nada diante da imensidão do desconhecido, portanto, coloque o rabo entre as pernas, saia da soberba e tente entender, pelo menos, o que você está fazendo da sua vida no mundo, no seu país, na sua cidade, no seu bairro, na sua rua, na sua casa, no seu quarto.

sábado, 19 de agosto de 2023

 

A minha cama

A minha cama sempre foi um dos lugares mais aconchegantes, um refúgio onde eu conseguia me confortar. Ali eu me sentia protegido; não por ninguém, mas pela cama, pelas cobertas, pelo quarto, pela intimidade de estar deitado num lugar seguro. E era cair ali e dormir, sem problemas.

Hoje eu não sinto mais essa segurança. Não sinto a proteção de outrora. Estou sempre assustado, esperando que o pior aconteça. No mundo de hoje o pior está para acontecer a qualquer momento e isso mudou tudo.

Talvez seja eu que tenha mudado, pois o mundo está para acabar desde a Era Mesozoica, e isso nunca acontece.        

            Então coloco sobre o ouvido uma almofada e espero, por muito tempo, que os pensamentos se esvaiam, até que eu encontre um pouco de paz antes de voltar a esperar que o pior aconteça.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

 

O amolador

Ser mascote parecia ser a sina do amolador. Ele mascotava sempre que amolava e tudo o que era feito com boa intenção era reconhecido por um único homem: o empreendedor, que vivia dizendo ao mascote para estudar, estudar, estudar, até perder um pedaço da capacidade de raciocínio e concentração. Depois ele deveria aprender a sorrir com o canto da boca para que todas as pessoas aceitassem os seus argumentos, sua arrogância, suas mentiras e hipocrisias, e que, só assim, ele deixaria de ser um mascote e viraria um verdadeiro amolador que amola.

Seria uma dura empreitada, mas o mascote amolador estava decidido a abrir mão de várias situações de prazer para que, um dia, conseguisse alcançar o seu objetivo, que era o de virar um amolador verdadeiro.

Aí, sim! Tudo partiria dele.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

 

Consolidação

Hoje o arbusto curvou-se diante da necessidade de se costurar medidas de suficiência. Hoje, ademais, se consolidou também a caracterização do desejo. Diante de todos os fatos oníricos captados pela manhã, premeditou-se o sofrimento, todavia, andaremos fingindo estabilidade.

Hoje, para justificar a bondade que se acumulou nos processos de rejuvenescimento aleatório, pede-se que se ouça aquele grito de indignação obtusa. Hoje, para melhor dizer, é de se imaginar que nada faltará, além do nada já existente.

            O absurdo do desejo incontrolado, incontido, contestado, não retribuído, me leva a concluir que o dia de hoje só existirá para os outros.

sábado, 5 de agosto de 2023

 

Conquistas

            Você é induzido a mentir como todos mentem, e se não o fizer, estará fora de um mercado próspero, que cresce a cada dia dando grande conforto aos mentirosos. Você é impingido a fingir, como todos fingem, e este é outro mercado promissor. Você sorri com o canto da boca, meneia a cabeça quando ironiza, disfarça um olhar de desaprovação, cospe - em pensamento - no rosto de um desafeto, bajula os poderosos, ignora os necessitados, necessita de cada centavo alheio, e justifica tudo isso em nome de uma causa nobre: acumular o máximo de objetos possíveis, para, no fim, morrer como todo mundo.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

 

                                                     A cirurgia
            

            Desapressado, coloquei o jaleco, a touca verde-clara e sentei-me na poltrona do quarto do hospital para esperar a maca. Subitamente corri para o banheiro e todos me olharam apreensivos, preocupados com o meu estado emocional. Naquele momento eu só queria me olhar no espelho, e rir. Aquele jaleco, aquela touca, a barba por fazer, me fizeram rir até me urinar todo, dando um grande trabalho às pessoas que me acompanhavam. Elas, solidárias, riam também, sem entender que eu, naquele momento, descia da soberba e me enxergava como realmente sou: um monte de carne podre.