terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

 

A vida é cíclica

A vida é cíclica. Você é feliz, infeliz, extremamente feliz, infeliz, e por aí vai. Nada é eterno. Talvez essa seja a grande mágica para que o ser humano consiga viver nesse mundo louco: um dia feliz, outro dia infeliz. Felicidade incondicional é impossível, no entanto, a minha grande vontade era a de ser feliz o tempo todo.

Já que é assim, o grande lance é você saber que será feliz quando estiver infeliz, e não pensar em infelicidade quando você estiver feliz.


sábado, 25 de fevereiro de 2023

 

A velha bêbada

O texto era sobre um cachorro preto, pequeno, manco, sem um pedaço do rabo, tentando atravessar a Praça General Isidoro carregando um enorme pedaço de osso, que talvez pesasse mais do que o seu próprio peso.
Logo mudei de assunto e passei a escrever sobre uma velha bêbada. Ela tomava cachaça e me deu vontade acompanhá-la. Não tinha cachaça em casa. Fui até a geladeira, peguei uma cerveja e ficamos lá, eu e a velha, bebendo. Quanto mais eu bebia, mais a velha ficava bêbada. Os textos começaram a se interagir e a velha resolveu ajudar o cachorro com o osso. O cachorro rosnou e deu-lhe uma dentada no dedo indicador da mão direita. Ela limpou a mão na saia e voltou a beber comigo, sem imaginar que aquele frágil cachorrinho era portador de hidrofobia.
         No fim ela morre!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 

Que apareça um anjo

Talvez um dia, quando tudo estiver despencando novamente, e eu lá embaixo, tapando a cabeça com as mãos, tentando me proteger, apareça um anjo; não desses que irão me cobrar a perfeição, mas um anjo meio maluco, um anjo legal, que me ensine a sair do buraco sem que eu me transforme em um anjo que cobra a perfeição, e que esse anjo me ensine a ser meio maluco como ele, e me ensine também a não dar tanta importância às pequenas coisas que sempre me levam lá para baixo e me deixam tapando a cabeça com as mãos para tentar me proteger.

 

domingo, 19 de fevereiro de 2023

 

Eu não tenho desculpas

         Eu pego uma folha de papel em branco e tento escrever. Não tenho nada na cabeça. Após alguns instantes me vem a palavra “Bolha”. Não é tão difícil escrever sobre uma bolha: Eu lá dentro? Uma bolha se estourando? Uma bolha crescendo sobre o meu calcanhar? As perguntas são muitas e as respostas, quanto mais simples, melhores.

Não é difícil escrever sobre nada. Um pé retorcido dá margem a um acidente espetacular. Por trás de uma mosca remexendo as patinhas dianteiras esconde um lindo prato de comida ou uma carcaça de boi apodrecida. Um nariz empinado pode demonstrar orgulho ou um certo defeito físico. Uma cobra rastejando pode estar fugindo de um predador ou deslizando sorrateiramente, prestes a dar o bote em uma indefesa criancinha.

          Eu não tenho desculpas! A cabeça está sempre cheia de coisas para serem escritas. Se fosse fácil não ter nada na cabeça nós sempre atingiríamos a excelência em meditação.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

 

Exposição

 Eu sou um artista e sei que a arte é um espelho que revela a nossa face. Eu detesto me revelar, detesto me expor, mas o artista tem que fazer exposições para mostrar o seu trabalho e com isso conseguir viver.

            Então eu, que quero sempre estar escondidinho no meu canto, tenho que me revelar, sorrir e fingir que não foi sofrido pintar todas aquelas telas, e fingir também que a vida é bela como é para todas as pessoas ao meu redor.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

 

Controladora

        Mesmo após a nossa separação ela continuava a me controlar. Sua presença era constante na minha vida e isso não deixava de ser uma forma de controle. Eu tentava me esquivar, sumia por uns tempos, mas ela sempre conseguia me encontrar. Nós não nos encontrávamos fisicamente. Ela aparecia, ora em um prato que eu pedia em um restaurante, ora na imagem de uma atriz famosa, ora emitindo seu cheiro no corpo de outra pessoa. Até na graça de um inocente cachorrinho de rua, que ela tanto gostava, aparecia para me controlar.

        Um dia nós nos encontramos, Ela estava feliz, não sei por que, e eu, sofrido, não me expus. Ela me falou de sua vida, de seus projetos, e eu me senti tão insignificante diante daquela exuberância toda que descobri, naquele momento, que aquela solidão cósmica, aquela presença constante de um ser inexistente, só eu sentia, e que o melhor que eu tinha a fazer era aceitar a derrota e me iniciar novamente na arte da conquista, para, no fim, me envolver mais uma vez com o fardo da separação.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

 

Gostosão

 

Eu estava sentado em um lugar público, observando as pessoas, tentando, com isto, adquirir inspiração para escrever, quando um homem se aproximou e sentou-se ao meu lado. Vários lugares estavam vazios, no entanto ele sentou-se ao meu lado e passou a olhar-me, meio sério, meio rindo, como a expressão da Mona Lisa. Ele se aproximou mais e mais e seu olhar, agora, era de louco, tarado, pederasta, não sei. Depois perguntou-me se eu tinha fogo. Eu disse não e ele concluiu: bonito o dia, não? Eu disse não.

Ele me olhou enfurecido. Levantou-se e saiu. Eu o acompanhei com os olhos. Ele parou um pouco adiante. Continuou a me olhar. Eu comecei a tremer. Não sei brigar. O homem cuspiu no chão, depois veio se aproximando, chegando o rosto bem perto do meu ouvido. Ele me morderá a orelha, tenho certeza, eu pensei. Tapei bruscamente as orelhas com as mãos, e ainda consegui ouvi-lo dizer: gostosão!!!

 Depois disso ele se foi rebolando, e eu, aliviado, mas tenso, e ainda suando, voltei a observar as pessoas, tentando adquirir inspiração para escrever.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

 

Monotonia

O meu trabalho na Secretaria era extremamente monótono e talvez tenha sido este o motivo que me levara a tal comportamento: comecei mudando sistematicamente a bolsa de D. Elvira de lugar. Confesso que ela custou a perceber, porém, a partir do momento da certeza da invasão de sua privacidade, passou a dedicar toda a atenção à bolsa, deixando-me livre para trocar de lugar os seus objetos cotidianos.          

Com muita paciência, consegui fazer com que ela valorizasse um clipes sobre a mesa como se valoriza um filho brincando no berço, e se horrorizasse ao vê-lo sobre a cadeira, como se vendo o mesmo berço boiando com a criança sobre um mar revolto. 

Sempre que posso, costumo visitá-la no Hospital Psiquiátrico, e por falta de oportunidade, ainda não dei sequência ao meu trabalho.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

 

Confissão

         Não foi bem assim que a coisa aconteceu, mas para amenizar a minha situação diante da justiça, fui obrigado a inventar tudo aquilo. Agora, arfando aqui no leito de morte, necessito dizer que naquele dia, apesar do ódio que sentia por Luiza, não tinha intenção de matá-la, a não ser que ela estivesse com o amante naquele momento, no entanto, ao passar frente ao banheiro, notei que ela tomava um banho de espuma. Ao seu lado, numa pequena mesa de armar, um abajur aceso, uma garrafa de vinho Rubesco Torgiano, com uma taça pela metade, e algumas planilhas que ela pretendia analisar. Eu entrei e caminhei em sua direção. Ela sorriu e me chamou, estendendo os braços. Eu também sorri, e ao virar-me, esbarrei propositadamente com o cotovelo no abajur, empurrando-o para dentro da banheira. Depois esperei que Luiza acabasse com aqueles horríveis solavancos, para sair desconsolado a procura de ajuda.