quinta-feira, 30 de novembro de 2023

 

Carência

Um tiro certeiro acertou um certo sujeito chamado João. João caiu de bunda no chão, mas o tiro que levou não acertou sua bunda, e sim, sua mão. O tombo foi de susto e João, ao se levantar, pegou a mão com a outra e fez uma careta. Como não havia ninguém olhando, parou de fazer careta e levou sua mão para o hospital.

Só faltava mancar de tanta carência afetiva. Sua mãe não estava lá para dar-lhe um beijinho e afagar-lhe os cabelos. Seu pai não estava lá para enfiar-lhe a mão a cara, dizendo que homens não choram. Sua mulher não estava lá para fazer um escândalo e desmaiar ao se deparar com aquela mão ensanguentada.

           E lá ia João, pensando... Pensando e mancando, mancando e chorando, chorando e s’amando, s’amando e sarando, sarando e se lembrando de que sarado a vida é outra, mais dura, mais difícil de se levar, mais difícil de aguentarrrrrrrrrrrrrgh.

domingo, 26 de novembro de 2023

 

A responsabilidade

A responsabilidade é uma merda. É claro que todos nós devemos estar atentos para não abusarmos da falta dela. Tirando as pessoas que se escondem sob uma capa de responsabilidade para executar as maiores falcatruas, a responsabilidade é castradora. Quanto mais eficiente, quanto mais centrado em coisas inúteis, mais responsabilidade você adquire, e isto não o deixa se movimentar.

          Para a maioria das pessoas a responsabilidade é o céu e a falta dela é o inferno. Já virou lugar-comum dizer que o inferno é melhor do que o céu, mas, Deus que me perdoe: viva a falta de responsabilidade!

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

 

Desconforto

            Na parede, amarelado sob uma moldura rota, o meu retrato, quando jovem, inspira mais respeito do que esse caco na cadeira de balanço, a forçar a perna num movimento ritmado, como se amenizando a eterna estagnação existente na casa. Até a mosca, que entrou fazendo três ou quatro visitas de inspeção em pontos distintos da sala preferiu o caco ao retrato emoldurado, causando-me um profundo desconforto.

sábado, 18 de novembro de 2023

 

Os velórios

            Os velórios me deprimiam. O defuntos, nem pensar! Não os encaravam. Eles eram sóbrios, superiores. Sabiam mais do inimaginável do que eu poderia imaginar. Hoje eu me dou com eles. Meus amigos estão partindo e a cada despedida eu me sinto mais à vontade. Passei a me encarar ali. Logo será a minha vez, e sempre me pego arrumando o colarinho de um ou outro, como se cuidando da minha aparência para partir com dignidade.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

 

Máquina enferrujada

É... O mundo vai girando e a gente girando junto. É uma imensidão desconcertante, assustadora o universo, e se a gente estiver sem dinheiro para pagar as contas, esse mundo, essa imensidão perde por completo a importância. A gente, na maioria das vezes, aqui nesse mundinho insignificante, sem dinheiro para pagar as contas não se assusta com a imensidão do universo.

            A máquina está enferrujada, não funciona, e os bichos da ferrugem atacam, atacam, e você lá, deitado com as mãos apoiando a cabeça sobre o almofadão, olhando para a imensidão do universo, sem ao menos perceber que ali existe um universo para ser observado.

sábado, 11 de novembro de 2023

 

                                                        Descendência           

            Eu não tenho descendência de rio no quintal. Tenho de área de serviço. Eu não tenho descendência de árvore. Tenho de cama colorida. Eu não tenho descendência de concurso de cuspe, concurso de mijo, nem de pula toco. Tenho de Nintendo. Minha descendência é concreta, não abstrata.

domingo, 5 de novembro de 2023

 

O carregador oficial

O bêbado tinha um carregador. O carregador era sério, devia ser seu amigo ou parente. O bêbado gesticulava ao falar. Ninguém entendia seus gestos, nem suas palavras. O carregador era paciente e parece que cumpria uma obrigação. Eu não sabia se aquele era o carregador oficial do bêbado, mas ele estava desempenhando aquela função com muito esmero. Na sacada, a mulher recebeu o bêbado e o levou para dentro, como se leva algo difícil de carregar.

 O carregador foi-se embora. A mulher do bêbado deve ser o carregador oficial.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

 

Dura Realidade

            Tomado por uma grande necessidade de liberdade, saí, atravessei a cidade e me situei num campo florido, até que um enxame de abelhas levou-me para a praia, deixando-me a contemplar pernas roliças, seios firmes e bem delineados de lindas mulheres, e no momento em que essas mulheres começaram a tirar os seus biquínis, tentando,  delicadamente, esconder o sexo, apesar de seus olhares insinuantes, e eu já sentindo um princípio de ereção, ouvi o barulho da portinha se abrindo e vi a panela com um caldo marrom sendo jogada cárcere adentro, trazendo-me de volta para a minha dura realidade.