sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

 

O dique

O dique transbordou, despejando sobre os seus pés a lama que ele acumulara durante todos esses anos.

Na clínica, após o procedimento, ele não tinha consciência do que realmente acontecera, mas as pessoas que cuidaram dele lhe disseram que o processo foi longo e dolorido.

Como ele não se lembrava de dor e sofrimento, logo iniciou um novo processo de acumulação de lama, e permanecerá assim até que o dique transborde novamente.

É na lama que ele consegue se situar melhor.

domingo, 22 de dezembro de 2024

 

A massa enlatada

         Sou uma massa enlatada. Cérebro, alma, vísceras, defeitos, tudo espremido lá dentro. Os demônios estão na lata. Quero sair noite adentro, preciso me libertar.

         Preciso de um abridor de latas.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

 

Voar como os pássaros

            Iniciei uma jornada com o vento. Ele me levava para um lado, eu insistia em ir para o outro. Ele me puxava, eu resistia. Ele faltava e eu, desesperado, tentava permanecer lá em cima. Depois eu mergulhava e ele deixava. Logo eu me aprumava e nós experimentávamos, por alguns instantes, a paz. Ao entardecer, eu tomava a linha, guardava a pipa e despassarinhava para a noite chegar.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

 

Universo em construçãoUniverso em construção

            As oportunidades estão aí para serem abraçadas. Uns abraçam poder, objetos, condição. Eu abraço o inexistente, e faço dele um universo em construção.

            

domingo, 8 de dezembro de 2024

 


Minhocas na cabeça

            Ando com minhocas na cabeça. Elas revolvem lá dentro as cores e as palavras. De repente, jorram palavras soltas que eu desarrumo para não ter dúvidas. Jorram também cores, que eu espremo, umas com as outras, dando-lhes disfunção acadêmica. As minhocas me ajudam a brincar com a lógica e dar desimportância às coisas sérias da vida.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

 

Mundo bobo

            Vivemos num mundo bobo. As necessidades superam o observar, o sentir, o prazer. Eu concreto, não abstraio. Eu realinho, não voo. Eu fabrico, não arto. Eu ignoro, não sinto. Eu balelo, não poemo. Eu canso.



sábado, 30 de novembro de 2024

 

Agora que sou mais novo

            Quando eu era mais velho, e bem responsável, tudo funcionava de acordo com os padrões de funcionalidade. Vento era vento e pronto. O vento não lambia a copa das árvores, nem deixava que uma borboleta se debruçasse sobre as suas asas para cumprir o seu processo de migração.

            Eu era de pedra e não sabia, porque pedra, nessa época, era apenas um mineral sólido. Ela não enchia os vazios dos calangos.

            Agora que sou mais novo, eu não deserto mais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

 

Comida de lagarto

            O louva-a-deus, na copa da árvore, suplicava carinho, atenção. O lagarto subiu na árvore. Suplicava comida. De uma linguada trouxe o louva-a-deus para dentro da sua boca, e ficou, por alguns instantes, com aquele volume forçando-lhe as bochechas. Só as mãos postas do louva-a-deus ficaram pra fora.

            Suas preces não foram atendidas.

sábado, 23 de novembro de 2024

 

Eu só fui piorando

            Aquele senhor meio louco, que andava a conversar com pedras e tentava compartilhar com as coisas do chão o cheiro do mar, era eu. Todos, em vão, tentaram me consertar. Eu só fui piorando, e hoje, monto na ventania e saio a passear pela noite chuvosa.

            Eles dizem que isso é pior do que ver televisão.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 

As sete notas musicais

            As sete notas musicais libertam-se do piano, misturando-se umas com as outras,  transformam o silêncio em deslumbre chopiniano.

sábado, 16 de novembro de 2024

 

A inexistência do amor

            Na minha vida não existia o amor. Quando ele chegou, trazendo o desejo, a incerteza, o desespero, a alegria, tudo ao mesmo tempo, eu até senti saudades da sua beleza, quando ele não existia, mas não demorou muito e logo tudo isso impulsionou o tremular das asas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

 

Meio termo

            A noção de ridículo priva o homem de exercer toda a sua liberdade. A falta dela transforma o homem no idiota da aldeia. Há de se considerar um meio-termo. 

sábado, 9 de novembro de 2024

 

Completude

            Dois corpos, possuídos de completude, desmoralizam a rigidez do tempo, a harmonia das horas, o fardo de existir, e provam que é possível ouvir o clamor das estrelas e o canto das normas não estabelecidas.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

 


Germes

         Quando eu morrer, logo serei germes - milhares deles - e hei de cumprir a função de comer as taboas do caixão.

         E quando eu morrer germes, me multiplicarei?

         Não sei!


sábado, 2 de novembro de 2024

 

Protesto

             Preciso escrever sobre coisas, sobre casos, sobremaneira, sobretudo, sobremesa, sobressalente. Preciso abrir as asas e voar para bem longe dos meus pés, dos meus dentes, do meu olfato. Preciso sair correndo, correndo sem estar fuginfo, correndo para encontrar a iluminação intelectual que me falta. Tenho que sair da bolha escura, dizer boceta sem autocrítica, sem achar que estou sendo vulgar, banal, pornográfico. Preciso achar o caminho das pedras sobre as águas do rio, sem que ninguém perceba o engodo. Preciso dizer puta que pariu em voz alta, escrever em voz alta, ouvir a minha voz alta no pensamento ao escrever filho da puta. Eu não cuspo nos desafetos. Já não existem mais jornais para cuspir na foto deles como fazia o meu sogro, um grande jornalista reacionário mineiro, que participou e documentou a política nacional desde a época da ditadura de Getúlio Vargas, seu amigo.      

            Mas para quem quer fugir eu estou voltando para detalhes insignificantes do passado. Para quem quer sair daqui, alcançar a liberdade de outras linguagens, eu estou voltando. Se eu estivesse no mato, estaria falando sobre o rio, o vento, o sol. Se estivesse na praia falaria sobre a maresia implacável corroendo tudo o que é de ferro, mas não! Eu estou na cidade, no centro dela. Agora ouço uma sirene. Deve ser uma ambulância. Esse é o caminho para o Pronto- Socorro. Eu estou no centro. Em frente à minha janela, do outro lado da rua, estão construindo um prédio de 12 andares. Já tem janelas, vidros, lajotas claras nas paredes e estão concluindo os jardins da entrada. Logo colocarão uma cerca. Que seja uma grade para que não escureça a paisagem. Os pedreiros martelam, os carros passam. Estou escrevendo como escrevia no Rio, na década de 70, quando reclamava da cidade, mas maravilhado de estar nela. O tempo passou. Eu estou aqui em outra cidade, reclamando do mesmo jeito. Nada mudou. Nada muda. Só que agora eu estou reclamando da minha falta de imaginação para escrever, pintar, desenhar. A burrice da humanidade ao lidar com a natureza está me afetando. Isso deveria me incentivar, não me destruir.

            Pelo menos eu tenho a cidade para culpar, mesmo que não seja ela.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

 

Aparência

         Eu pareço uma pessoa séria. Devido a esta aparência, todos me respeitam e eu dou grande valor a isto. Ninguém sabe quem sou eu. Esta aparência austera esconde uma certa insegurança. Eu jamais revelarei meus sentimentos mais íntimos. No fundo, atrás da aparência, está um homem comum, que se sensibiliza e chora, sem que ninguém perceba, ao assistir a um filme onde é negado um osso a um cachorrinho vira-lata.

sábado, 26 de outubro de 2024

 

A árvore do conhecimento

         A árvore do conhecimento era a macieira. Era proibido comer a fruta que ela nos proporcionava, apesar de ela produzir uma fruta muito palatável. Nós preferimos o conhecimento à possibilidade da vida eterna. Preferimos o conhecimento a ficarmos babando bestamente num lugar maravilhoso, sem saber o que se passava ao nosso redor.

         Foi daí que vieram os desejos inalcançáveis, as futricas, a necessidade de ser mais, a inveja, mas tudo com muita intensidade. E no meio de tudo isso eu já não sei o que seria melhor: viver eternamente o gozo da alienação ou conviver com a burrice do mundo à nossa volta.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

 

Dívidas

        Um grande feito não é não dever nada a ninguém, e sim, não se preocupar com isto. Eu estou me referindo à dívidas porque hoje ouvi alguém dizer essa frase: “Não devo nada a ninguém”.  

        Ninguém tem que se vanglorias por não dever nada a ninguém. Isso seria a regra: ninguém deveria dever nada para aos outros. Mas a vida não é assim. Todos devem, até os bancos, com seus juros e taxas mirabolantes nos devem, e eu, quando não estou devendo, me sinto tão seguro que logo adquiro uma nova dívida pra me sentir incluso na honrosa casta dos devedores. 

sábado, 19 de outubro de 2024

 

O relógio

            O relógio está sempre trabalhando, sempre cumprindo a sua missão de determinar as horas. Trabalha como o pulsar dos nossos corações.

            Nós sentimos o coração batendo e às vezes é assustador. Dá vontade de pegá-lo no colo, cuidar dele, que bate incansavelmente, sem trégua, há vários anos.

            Só que o relógio está ali para determinar as horas, e nós, com nossos corações pulsantes, estamos sempre tentando nos livrar delas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

 

Imaginação

        Na sombra da memória vejo com dificuldade. São fleches de luz insinuando partes do seu corpo e da sua personalidade. Ela ainda não se apresentou. Me irrito! Não estou aqui para brincar de esconde-esconde num lugar escuro desse.

sábado, 12 de outubro de 2024

 

A fila anda

            Os jornais estão acabando. Daqui a pouco não serão mais publicados. O dinheiro, notas e moedas – quem diria? – também estão. É difícil encontrar troco, pois a maioria das transações são feitas de maneira virtual.

            Daqui a pouco o dinheiro, as bancas de jornais, os bancos, serão uma saudade, ou um alívio, como nós nos sentimos aliviados com o fim das máquinas de datilografia, os mata-borrões, os orelhões e as lanternas à pilha.

            Tudo isso perdeu a função prática, mas apesar do alívio, continuam tendo um lugar na nossa afetividade.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

 

Doce ilusão

            A felicidade, para uma criança, está em empurrar o carrinho do outro. Para um menino isso basta. Depois, quando você já não consegue empurrar o fracasso da sua vida, volta a ser criança e passa a empurrar os carrinhos dos outros. Falsas conquistas, doce ilusão.

sábado, 5 de outubro de 2024

 


Discutindo a relação

            Um casal vivia brigando por causa dos outro. Um dia eles resolveram pensar um pouco nos motivos dessas brigas e passaram a noite discutindo a relação. Ele dizia (sobre ele) que iria mudar, e que nunca mais iria mastigar apenas vinte e uma vezes ao dar uma garfada. Ela, vegetariana, gostou da promessa, e ele continuou dizendo (sobre os outros), que quando alguém insinuasse que ele estava sendo traído, não iria se importar, nem levaria essa negatividade para as discussões noturnas. Ela, por sua vez, disse (dela) que iria parar de se esfregar no almofadão da sala, deixaria de exigir que ele urinasse sentado para não sujar a tampa do vaso e nunca mais pediria roupa emprestada à mulher do seu amante.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

 

A ousadia

            A ousadia é um comportamento transgressor que, para o ousado, é só uma maneira de ser coerente num mundo completamente descompromissado com os indivíduos que o habitam.

sábado, 28 de setembro de 2024

 

As moscas

            Na sala vazia uma mosca voa zumbindo, acompanhada de várias mosquinhas silenciosas, refletidas no espelho trincado.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

 

Translado

O caixão, descendo no elevador, levava o defunto aprumado. Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali; de terno, sapatos engraxados, e aquelas flores querendo devorá-lo. Pareciam antecipar a função dos germes.

Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali, e naquele momento, as flores, algumas já despedaçadas sobre o morto, de pé, dentro do elevador, ainda procuravam a claridade.

O morto, indiferente, seguia em frente, sem se importar com o fato de que logo seria esquecido.



sábado, 21 de setembro de 2024

 

Ignorância

            Quanto mais conhecimento, maior o horizonte da ignorância. Eu procuro o conhecimento, mesmo sabendo que no fundo o que estou procurando é a comprovação de que realmente eu não sei de nada.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

 

Corpo presente

            A missa de corpo presente é o derradeiro compromisso do defunto. Uns odeiam. Custaram a chegar ali e ainda têm esse compromisso. Outros, os que queriam continuar aqui, tentam aproveitar o máximo desse momento de badalação.

sábado, 14 de setembro de 2024

 

Carências

        Um homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra, uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.

        Não sejamos limitados, isso não é o fim do mundo.

        Um homem pode muito bem viver sem dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não se interessará por dinheiro e será muito mais inteligente.

        Na falta de lixo os ratos poderiam limpar as cidades dos vômitos dos indignados.

        Os carrapatos podem procurar o cavalo em vez de vaca, e as pulgas, um gato.

        Os vermes podem comer os mortos-vivos pelas beiradas, e as minhocas, tentar a areia.

        As abelhas, os restos de Coca-Cola espalhados nas mesas de bar.

        Os peixes podem procurar os aquários, e as baleias os museus arqueológicos.

        Para tudo há uma solução.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

 

Sem sentido

            O vazio invadiu a casa e o abismo virou sala. Tudo perdeu o sentido como realmente é. Eu me senti confortável na inutilidade das coisas. Um rio de despropósitos jorrou sobre mim, e eu, no abismo da sala, fui lavado pelo rio, que já não tinha importância.

sábado, 7 de setembro de 2024

 

O meu nome

                        O meu nome é Nerino. Esse nome me foi dado pelos meus pais. Suponhamos que eu já tenha vivido vidas passadas e tenha tido, em cada uma delas, um nome: João, Lorenzo, Haruki, Cheng Hao, Maria das Dores.

            Todos os nomes que me foram dados têm a sua importância pelo empenho de alguém para escolhê-los, mas quando eu voltar lá para cima, entre uma vida e outra, gostaria de saber qual o meu verdadeiro nome, qual o nome que eu sou conhecido pelos meus camaradas do lá do céu.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

 

A sombra

            O sol era intenso. Escondi-me debaixo de uma árvore. Cascas de cigarras ornamentavam o tronco. Alguns insetos, mortos de calor, fartavam a passarada. Uma cobra me assustou. Era uma festa de horror. Amedrontado, desisti de procurar abrigo debaixo da árvore e voltei para o sol.

sábado, 31 de agosto de 2024

 

Meu herói

            Será que o espermatozoide que me gerou teve que se esforçar, passar por cima de milhares de outros até fecundar o óvulo? Ou por estar muito bem preparado fisicamente chegou antes dos demais sem esforço?

            Será que se fosse outro espermatozoide qualquer, um dos milhares deles que tentaram fecundar o óvulo eu seria essa pessoa que escreve, desenha, que tem essa aparência, que pensa e age de uma forma única, diferente da forma única de todos os demais?

            Se for assim, se qualquer um daqueles milhares pudessem me gerar do jeito que eu sou, o meu espermatozoide gerador, o meu herói desde os tempos das aulas de biologia no científico perde completamente a importância, mas os outros adquirem o status de heróis, e qualquer uma deles poderiam ter ajudado a gerar esse grande camarada chamado Nerino.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 

Árvores e fios

            Árvores de rua submetem-se a fios. Primeiro os fios, depois as árvores. Árvores de rua são mutiladas para que os fios, intocados, continuem enviando sinais para as televisões.

sábado, 24 de agosto de 2024

 


Os de baixo

            Nós somo governados por uma pequena aristocracia. São os donos do nosso destino. Eles determinam o que vamos vestir, comer, onde trabalhar, definem o soldo reservado a cada um de nós, o governo que somos obrigado a aturar e as notícias, sempre exaltando-os subliminarmente.

            Muitos de nós, “os de baixo”, sentem-se como aristocratas, agem como aristocratas, sem dar importância para os seus pares, “os de baixo”.

            Essa atitude dos “muitos de nós” não incomodam os aristocratas, que se utilizam dessa conduta sonhadora para se fortalecerem.

            No tempo das cavernas, certamente o aristocrata seria o macho dominante, o mais forte, o primeiro a se alimentar de carne crua e das mulheres do bando.

            Hoje os aristocratas não aparecem muito. Vivem usufruindo dos frutos colhidos por nós, “os de baixo”.

            A verdade é que nós, através dos séculos, continuamos na ilusão de que um dia possamos alcançar a glória de sermos aristocratas.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

 

Aventura boba

            Viver é uma aventura, e nem todos são aventureiros. Os animais, sim, vivem a sua com intensidade. O ser humano vive uma aventura boba. Vive uma aventura cumulativa, e ainda por cima assiste televisão.

sábado, 17 de agosto de 2024

 

Os órgãos

                        A vagina é um órgão do sistema reprodutor feminino, como o pênis é o do masculino. Eles se entendem quando os seus portadores estão se entendendo. Às vezes esses portadores não estão se entendendo, estão até se odiando, circunstâncias da vida, mas depois de um certo tempo a vagina ou o pênis, ou os dois juntos sentem um grande prazer.                                                                                                                                                                                O prazer é uma sensação agradável, uma emoção, um estado de satisfação plena. Logo os dois órgão se libertam um do outro. O pênis sente uma grande necessidade de se prostrar, descansar, e a vagina, nem tanto. Ela está sempre querendo continuar, causando um grande desconforto ao portador do pênis. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

 

Jeans

            A calça jeans azuleja o corpo, mancha delineações estéticas e, quando velha, bem velhinha, permanece na nossa afetividade.

sábado, 10 de agosto de 2024

 

Carências

            Um homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra, uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.

            Não sejamos limitados, isso não é o fim do mundo.

            Um homem pode muito bem viver sem dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não se interesserá por dinheiro e será muito mais inteligente.

            Na falta de lixo os ratos poderiam limpar as cidades dos vômitos dos indigndos.

            Os carrapatos podem procurar o cavalo em vez de vaca, e as pulgas, um gato.

            Os vermes podem comer os mortos-vivos pelas beiradas, e as minhocas, tentar a areia.

            As abelhas, os restos de Coca-Cola espalhados nas mesas de bar.

            Os peixes podem procurar os aquários, e as baleias os museus arqueológicos.

            Para tudo há uma solução.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

 

Uma flor pegando a flor

            Eu vi uma mulher gorda tentando pegar uma flor que pendia de um galho. Ela, na ponta dos pés, com os braços esticados e o corpo aprumado, tentava pegar a flor, sem saber que naquele momento era ela a flor, que, com sua delicadeza, encantava um transeunte que a observava.

sábado, 3 de agosto de 2024

 

A chibata

O brejo se aproxima.

A chibata vai ao alto e desce como um raio.

O cavalo reage tentando alcançar o céu.

Relincha!

O homem cai de cabeça na pedra.

O cavalo se recompõe e sai a comer capim nas proximidades.


quarta-feira, 31 de julho de 2024

 

Sono

            Estou escrevendo, há várias horas, na lanchonete do Palácio das Artes. Estou cansado e com muito sono, mas vou continuar:

            “Um dia incontido, contanto que se conte o conto. Isso não conta neste cubículo calculado pelo pelo do paletó de pelúcia que pegou um pé de poeira e poluiu piolhos.”

            O olho fecha, a voz retumba na cabeça e o couro cabeludo continua intacto. Vou abaixar a cabeça em cima de uma folha e dormir, até que a dormência do braço me acorde para mandar-me para casa, onde dormirei na minha cama, lençóis cheirando à lavanderia, assoalhos brilhantes, reluzente, cortinas fechadas, abajur à meia luz, e nem um pernilongo para atrapalhar a paz. Obrigado!!!

sábado, 27 de julho de 2024

 

O belo no ar

            Eu procuro ouro no lixo, procuro pássaros a cantar. Procuro peixes no esgoto, procuro doce no mar. Eu não estou aceitando que tudo está a desmoronar. Eu procuro o belo no ar

quarta-feira, 24 de julho de 2024

 

Eu passo

            O tempo apressa o passo. Quanto mais apressa, mais eu passo.

sábado, 20 de julho de 2024

 

O desespero dos gansos

Estou sentado no parque. Chove. As árvores choram a falta do sol. Os gansos saíram do lago. Estão perfilados no gramado do teatro. Uma criança passa com a mãe. Cada um carrega um guarda-chuva. A criança parou para ver os gansos, que também choram a presença daquela criança estúpida, que logo os espantarão dali, entre gritos e pontapés.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

 

Palavras e significados

Caneta preta, caneta grossa, caneta azul, caneta fina. Lapiseira de ponta fina, lapiseira de ponta grossa, teclado, tudo serve, contanto que as ideias cheguem. Palavras, prismas, produtos, prosperidade, prospectos, prazer. Cada palavra com o seu sentido. Cada palavra com seu significado:

INSÍGNIA: Condecoração que se dá a mortos-vivos.

ESTABILIDADE: posição alcançada quando você já perdeu o entusiasmo para viver.

JUÍZO: Uma conquista pós-adolescência que o torna um chato.

JULGAR: Deliberar, na condição de juiz, coisas ou pessoas como se estivéssemos                                 sentenciando, na condição de juiz, a nós mesmos.

REORGANIZAR: Bagunçar tudo de novo.

           INSINUAR: Fingir que você não disse alguma coisa, quando realmente você não disse.

sábado, 13 de julho de 2024

 

Viver é bonito

Viver é bonito.
Um copo de vinho,
um naco de queijo,
um par, um carinho,
se possível um beijo.
Na hora é perfeito,
na hora é divino,
depois, ninguém sabe,
depois, só destino.
Viver é bonito.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

 

Vento e solidão

            Uma mosca sobrevoou o meu copo. Eu soprei. Ela voou sem rumo. O vento que eu utilizei não era meu. Eu apenas emprestei o meu corpo para a execução. O vento entrou, eu forcei os meus músculos para expulsá-lo e a mosca se foi. Isso há muito tempo, e agora, nem a mosca eu tenho para amainar a minha solidão.

sábado, 6 de julho de 2024

 

Alívio

                Quando ela se foi eu me senti como se me livrando de um sapato apertado. Foi um alívio e eu passei a caminhar descalço, à procura de um novo sapato que me fosse mais confortável.


domingo, 30 de junho de 2024

 

A dançarina do arame

            A dançarina do arame se contorce toda para manter-se de pé. Sua elegância é transmitida pelo guarda chuva que lhe dá suporte. Ali ela reina absoluta. Chega o momento em que a dançarina vira arame e nem o desconforto da música desafinada a faz desprender-se de lá.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

 

Virando na cama

            Acordo e vou correndo mato adentro de mim mora um anjo feito a cara escarrada do pai nosso que vai dar no fim da linha do trem bom de cama, bom de briga, bom de papo furado feitos um para o outro lado da cara de pau duro de roer a corda bamba que dorme novamente.