Pronto
Polípono, polónopo, patílogo
Precípito, prontísquo, presépilo
Prismálogo, prontívoro, pronto!
O cisco
Tudo
tem o seu valor, até um cisco insignificante, principalmente se ele estiver
alojado no olho de uma pessoa. Ele pode leva-la ao hospital ou acabar com a
alegria de muita gente. Pode impossibilitar um presidente de pronunciar o seu
discurso, ou fazer com que um motorista encoste o seu carro no acostamento;
isso se ele já não tiver causado um grande acidente. O cisco tem seu valor. Um
cisco tem sua importância. Eu sou um cisco. Talvez o cisco do cisco, se
comparado à grandeza do universo.
A terra é um cisco, e eu, na terra, sou insignificante. É tão difícil aceitar a nossa insignificância, mas com o passar do tempo você vai virando um cisco verdadeiro, um cisco com significado, daqueles que exigem e incomodam: o verdadeiro cisco no olho.
Nádegas
As nádegas são mais solenes do que as bundas.
Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda,
têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de uma bunda. A
função da bunda é a de despertar desejos, encantos, além de proporcionar à sua
proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Para o homem a bunda da mulher
não tem outra função senão a de despertar desejo e de sentar.
A
nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo
que pode ser dito em solenidades.
O vento pedia luz
Hoje eu acordei nas adjacências da alma, e não entendi porque o vento pedia luz. Foi na roda da bicicleta que ele pousou, e ela, estática, apesar de uma forte coceira no pedal do lado esquerdo, permaneceu quieta ali, em silêncio, com medo do vento sair para ventar em outras paragens.
Gagá
Eu espero viver ainda por muitos anos, até ficar gagá. Seria maravilhoso xingar pessoas, cuspir no chão, parar o trânsito com a bengala. Isso não tem acontecido. Ainda sou cordial. Primo pelo respeito às normas estabelecidas. Ainda estou consciente. Às vezes deslizo na falta de compostura, mas não deixo que ninguém note. Minha perspectiva de gagazisse tem diminuído de acordo com a perspectiva de toda a humanidade. Não é um mérito adiar a gagazisse, e sim, contingencias da época em que vivemos. Contingências de um mundo com suas cápsulas e tratamentos geriátricos. Claro que esse mundo só é alcançado por uma parte ínfima da população, e eu, pretensiosamente, me incluo nele.
Já passou da hora. Não consigo mais ser respeitoso e cordial.
Feio
Eu não sei se a flor
é linda porque a gente quer que ela seja ou porque ela é linda e pronto. A
flor, uma rosa, é, até certo ponto, feia e sem razão de ser. Pétalas vermelhas,
brancas, amarelas, rosas, umas por cima das outras, e aqueles espinhos, sempre
prontos a espantar herbívoros e a furar os nossos dedos. A flor é feia. É duro
constatar. Agora eu fiquei triste. Gente é feio, gente é horrível, gente é
necessário. Um braço é a coisa mais feia que existe. Um rosto, o nariz com dois
buraquinhos que ás vezes escorre é muito feio. A orelha é horrorosa, e ainda
por cima cresce com o tempo. Só não é feia as orelhas, os braços e o nariz da
mulher amada. Os órgãos sensoriais, separadamente, ou a falta de um deles no
conjunto da obra é um desastre. Sobre a língua, nem é bom comentar.
O chocolate é muito gostoso, mas um pedaço de chocolate amolecido, espalhado com o dedo sobre um vaso sanitário é repugnante. Até o cheiro de merda exala no ar. Tudo é uma ilusão. Uma manhã de sol encanta mais do que tudo isso, porque a manhã de sol é só a manhã de sol, e o sol, sábio como é, nem permite que a gente fixe o olhar nele para acha-lo também feio. Manhã de sol é mais uma ilusão. Baseado nessa constatação, há de se considerar que a rosa também é uma ilusão, como a manhã de sol, só que ela não nos ofusca com a sua claridade.
Carros
Passa um carro movido a barulho.
Logo, um outro movido a fumaça. Um terceiro se move em xingamentos, um outro é
movido a imprudência. Temos os que exalam amor, os que excedem na alegria e os
que disseminam a discórdia. Entre vários outros, temos os que se movem em
direção à morte. Estes sim, causam um grande movimento no movimento dos carros.
Se o mundo fosse das crianças
Brincadeira de criança: sal na lesma
a deixa pequenina. Ninguém se incomoda com o sofrimento dela. Correr para
chutar pássaros é melhor do que admirá-los. Chamar vesgo de vesgo, aleijado de
aleijado, gordo de gordo, sem pensar nas consequências, sem piedade, é tarefa
das crianças.
Esse é apenas um estágio, antes delas se tornarem cidadãs de bem. Se o mundo fosse das crianças ele seria bem pior.
Os sinos tocaram em vão
Os sinos tocaram em vão, e ninguém
foi capaz de ouvi-los, pois a lua sumiu no céu e todos se ocuparam da sua
ausência.
Era um presságio, diziam alguns. Era o fim do mundo, diziam outros. O padre ficou indignado. É apenas um eclipse, ele dizia. Os pombos acordaram assustados e, sem entender a confusão, passaram a fazer sexo nas colunas da entrada principal da Catedral. Só o mendigo louco, que olhava sorrindo para os pombos, entendeu que naquele momento o melhor a fazer era o que eles faziam nas colunas da entrada principal da Catedral.
Nádegas
As nádegas são mais solenes do que
as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não
têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de
encantar a libido dos homens. A função verdadeira da bunda é a de proporcionar
à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Mas os homens têm grande interesse nelas.
A
nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo
que pode ser dito em solenidades.
O casal era um. Tinham afinidades
intelectuais, corriqueiras, afetivas, sexuais, e viviam num Olimpo. Isso é
importante dizer: viviam num Olimpo e ninguém os afetavam.
Isso
durou muito tempo, por muitos anos, mas cumplicidade, felicidade, alegria,
nunca são eternos. Estão sempre se reciclando, mostrando-nos a que viemos,
mostrando-nos que se vivermos eternamente num paraíso, não evoluiremos, não
alcançaremos os níveis mais elevados, não acumularemos riquezas e objetos como
todos fazem.
Então toda a cumplicidade que o casal alcançou por mérito próprio, por terem sensibilidade e disposição para a felicidade, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme a inveja, o egoísmo, e agora seus filhos, já casados, vivem num olimpo e ninguém é capaz de afetá-los.
Nunca
mais
Eu ia escrever sobre o urubu. Estava com tudo já definido dentro da cabeça e não anotei. Perdi o texto. Eu acho que ia dizer que o urubu, apesar de toda a repugnância que nos transmite, causa grande admiração à urubua e aos urubinhos. Era tudo diferente e muito poético. Perdi o texto. Nunca mais.
Um dos dois há de vencer
Uma abelha entrou pela janela. Eu
soprei, ela saiu. Entrou novamente. Eu soprei, ela saiu. Voltou determinada. Eu
soprei, não adiantou. Eu peguei umas folhas de jornal. Ia estraçalhá-la. Ela
saiu.
Nessa hora não existe mel,
fecundação das plantas, beleza da fauna. Nessa hora prevalece o desejo de não
ser incomodada e o desejo de não ser picado. Um dos dois há de vencer a
batalha.
O mundo girando
Um dia nascendo, sem nada de novo. Um homem morrendo, matando o seu povo. Uma chuva forte, um sol que atrapalha. Um grito de morte, possessão que valha. Um momento alegre passa sem se ver, pra uma vida breve, temos que nascer. Um dedo indicando qualquer coisa errada, um sábio chorando por não saber nada. Um burro pastando, um rato a roer. Um boi ruminando pra poder viver. E o mundo girando, querendo girar. E a gente passando, sem querer passar.
O dique
O dique transbordou, despejando sobre os seus pés a lama que ele
acumulara durante todos esses anos.
Na clínica, após o procedimento, ele não tinha consciência do
que realmente acontecera, mas as pessoas que cuidaram dele lhe disseram que o
processo foi longo e dolorido.
Como ele não se lembrava de dor e sofrimento, logo iniciou um
novo processo de acumulação de lama, e permanecerá assim até que o dique
transborde novamente.
É na lama que ele consegue se situar melhor.
Voar como os pássaros
Iniciei uma jornada com o vento. Ele me levava para um
lado, eu insistia em ir para o outro. Ele me puxava, eu resistia. Ele faltava e
eu, desesperado, tentava permanecer lá em cima. Depois eu mergulhava e ele
deixava. Logo eu me aprumava e nós experimentávamos, por alguns instantes, a
paz. Ao entardecer, eu tomava a linha, guardava a pipa e despassarinhava para a
noite chegar.
Agora que sou mais novo
Quando eu era mais velho, e bem
responsável, tudo funcionava de acordo com os padrões de funcionalidade. Vento
era vento e pronto. O vento não lambia a copa das árvores, nem deixava que uma
borboleta se debruçasse sobre as suas asas para cumprir o seu processo de migração.
Eu era de pedra e não sabia, porque
pedra, nessa época, era apenas um mineral sólido. Ela não enchia os vazios dos
calangos.
Agora que sou mais novo, eu não
deserto mais.
Comida de lagarto
O louva-a-deus, na copa da árvore, suplicava carinho,
atenção. O lagarto subiu na árvore. Suplicava comida. De uma linguada trouxe o
louva-a-deus para dentro da sua boca, e ficou, por alguns instantes, com aquele
volume forçando-lhe as bochechas. Só as mãos postas do louva-a-deus ficaram pra
fora.
Suas preces não foram atendidas.
Eu só fui piorando
Aquele senhor meio louco, que andava
a conversar com pedras e tentava compartilhar com as coisas do chão o cheiro do
mar, era eu. Todos, em vão, tentaram me consertar. Eu só fui piorando, e hoje,
monto na ventania e saio a passear pela noite chuvosa.
Eles dizem que isso é pior do que ver televisão.
Protesto
Preciso escrever sobre coisas, sobre casos, sobremaneira, sobretudo, sobremesa, sobressalente. Preciso abrir as asas e voar para bem longe dos meus pés, dos meus dentes, do meu olfato. Preciso sair correndo, correndo sem estar fuginfo, correndo para encontrar a iluminação intelectual que me falta. Tenho que sair da bolha escura, dizer boceta sem autocrítica, sem achar que estou sendo vulgar, banal, pornográfico. Preciso achar o caminho das pedras sobre as águas do rio, sem que ninguém perceba o engodo. Preciso dizer puta que pariu em voz alta, escrever em voz alta, ouvir a minha voz alta no pensamento ao escrever filho da puta. Eu não cuspo nos desafetos. Já não existem mais jornais para cuspir na foto deles como fazia o meu sogro, um grande jornalista reacionário mineiro, que participou e documentou a política nacional desde a época da ditadura de Getúlio Vargas, seu amigo.
Mas
para quem quer fugir eu estou voltando para detalhes insignificantes do
passado. Para quem quer sair daqui, alcançar a liberdade de outras linguagens,
eu estou voltando. Se eu estivesse no mato, estaria falando sobre o rio, o
vento, o sol. Se estivesse na praia falaria sobre a maresia implacável
corroendo tudo o que é de ferro, mas não! Eu estou na cidade, no centro dela.
Agora ouço uma sirene. Deve ser uma ambulância. Esse é o caminho para o Pronto-
Socorro. Eu estou no centro. Em frente à minha janela, do outro lado da rua,
estão construindo um prédio de 12 andares. Já tem janelas, vidros, lajotas
claras nas paredes e estão concluindo os jardins da entrada. Logo colocarão uma
cerca. Que seja uma grade para que não escureça a paisagem. Os pedreiros
martelam, os carros passam. Estou escrevendo como escrevia no Rio, na década de
70, quando reclamava da cidade, mas maravilhado de estar nela. O tempo
passou. Eu estou aqui em outra cidade, reclamando do mesmo jeito. Nada mudou.
Nada muda. Só que agora eu estou reclamando da minha falta de imaginação para
escrever, pintar, desenhar. A burrice da humanidade ao lidar com a natureza
está me afetando. Isso deveria me incentivar, não me destruir.
Pelo
menos eu tenho a cidade para culpar, mesmo que não seja ela.
Aparência
Eu pareço uma pessoa séria. Devido a esta aparência, todos me respeitam e eu dou grande valor a isto. Ninguém sabe quem sou eu. Esta aparência austera esconde uma certa insegurança. Eu jamais revelarei meus sentimentos mais íntimos. No fundo, atrás da aparência, está um homem comum, que se sensibiliza e chora, sem que ninguém perceba, ao assistir a um filme onde é negado um osso a um cachorrinho vira-lata.
A árvore do conhecimento
A árvore do conhecimento era a
macieira. Era proibido comer a fruta que ela nos proporcionava, apesar de ela
produzir uma fruta muito palatável. Nós preferimos o conhecimento à possibilidade
da vida eterna. Preferimos o conhecimento a ficarmos babando bestamente num
lugar maravilhoso, sem saber o que se passava ao nosso redor.
Foi daí que vieram os desejos
inalcançáveis, as futricas, a necessidade de ser mais, a inveja, mas tudo com
muita intensidade. E no meio de tudo isso eu já não sei o que seria melhor: viver
eternamente o gozo da alienação ou conviver com a burrice do mundo à nossa
volta.
Dívidas
Um grande feito não é não dever nada a ninguém,
e sim, não se preocupar com isto. Eu estou me referindo à dívidas porque hoje ouvi alguém
dizer essa frase: “Não devo nada a ninguém”.
Ninguém tem que se vanglorias por não dever nada a ninguém. Isso seria a regra: ninguém deveria dever nada para aos outros. Mas a vida não é assim. Todos devem, até os bancos, com seus juros e taxas mirabolantes nos devem, e eu, quando não estou devendo, me sinto tão seguro que logo adquiro uma nova dívida pra me sentir incluso na honrosa casta dos devedores.
O relógio
O relógio está sempre trabalhando,
sempre cumprindo a sua missão de determinar as horas. Trabalha como o pulsar
dos nossos corações.
Nós sentimos o coração batendo e às vezes
é assustador. Dá vontade de pegá-lo no colo, cuidar dele, que bate incansavelmente, sem trégua, há vários anos.
Só que o relógio está ali para determinar as horas, e nós, com nossos corações pulsantes, estamos sempre tentando nos livrar delas.
A fila anda
Os jornais
estão acabando. Daqui a pouco não serão mais publicados. O dinheiro, notas e
moedas – quem diria? – também estão. É difícil encontrar troco, pois a maioria
das transações são feitas de maneira virtual.
Daqui a
pouco o dinheiro, as bancas de jornais, os bancos, serão uma saudade, ou um
alívio, como nós nos sentimos aliviados com o fim das máquinas de datilografia,
os mata-borrões, os orelhões e as lanternas à pilha.
Tudo isso perdeu
a função prática, mas apesar do alívio, continuam tendo um lugar na nossa
afetividade.
Discutindo
a relação
Um casal vivia brigando por causa dos outro. Um dia eles resolveram pensar um pouco nos motivos dessas brigas e passaram a noite discutindo a relação. Ele dizia (sobre ele) que iria mudar, e que nunca mais iria mastigar apenas vinte e uma vezes ao dar uma garfada. Ela, vegetariana, gostou da promessa, e ele continuou dizendo (sobre os outros), que quando alguém insinuasse que ele estava sendo traído, não iria se importar, nem levaria essa negatividade para as discussões noturnas. Ela, por sua vez, disse (dela) que iria parar de se esfregar no almofadão da sala, deixaria de exigir que ele urinasse sentado para não sujar a tampa do vaso e nunca mais pediria roupa emprestada à mulher do seu amante.
Translado
O caixão, descendo no elevador, levava o defunto
aprumado. Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali; de terno, sapatos
engraxados, e aquelas flores querendo devorá-lo. Pareciam antecipar a função
dos germes.
Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali, e naquele
momento, as flores, algumas já despedaçadas sobre o morto, de pé, dentro do
elevador, ainda procuravam a claridade.
O
morto, indiferente, seguia em frente, sem se importar com o fato de que logo
seria esquecido.
Carências
Um homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra, uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.
Não sejamos limitados, isso não é o fim
do mundo.
Um homem pode muito bem viver sem
dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não se interessará por dinheiro e
será muito mais inteligente.
Na falta de lixo os ratos poderiam limpar
as cidades dos vômitos dos indignados.
Os carrapatos podem procurar o cavalo em
vez de vaca, e as pulgas,
um gato.
Os vermes podem comer os mortos-vivos pelas
beiradas, e as minhocas, tentar a areia.
As abelhas, os restos de Coca-Cola
espalhados nas mesas de bar.
Os peixes podem procurar os aquários, e as
baleias os museus arqueológicos.
Para tudo há uma solução.