sábado, 29 de março de 2025

 

Pronto

Polípono,  polónopo,  patílogo

 Pecípito, podúboro, paléfico.

 Precípito, prontísquo, presépilo

Prismálogo, prontívoro, pronto!

quarta-feira, 26 de março de 2025

 

Isca de peixes

            A minhoca é inofensiva. Não tem o veneno da abelha, nem a picada da formiga. Ela só revolve a terra para que as plantas nasçam exuberantes. Com aquele seu gênio manso serve também para cobrir o anzol como isca para peixes.

quarta-feira, 19 de março de 2025

 






A bailarina da caixa de música

                     A bailarina da caixa de música esvoaça pelo ambiente. A música pode
ser a mesma de toda a vida, no entanto, única e prazerosa. A barra da saia da
bailarina já está gasta pelo atrito com a caixa, porém, a delicadeza de seus
movimentos a torna passarinho.

sexta-feira, 14 de março de 2025

 

O cisco

            Tudo tem o seu valor, até um cisco insignificante, principalmente se ele estiver alojado no olho de uma pessoa. Ele pode leva-la ao hospital ou acabar com a alegria de muita gente. Pode impossibilitar um presidente de pronunciar o seu discurso, ou fazer com que um motorista encoste o seu carro no acostamento; isso se ele já não tiver causado um grande acidente. O cisco tem seu valor. Um cisco tem sua importância. Eu sou um cisco. Talvez o cisco do cisco, se comparado à grandeza do universo.

            A terra é um cisco, e eu, na terra, sou insignificante. É tão difícil aceitar a nossa insignificância, mas com o passar do tempo você vai virando um cisco verdadeiro, um cisco com significado, daqueles que exigem e incomodam: o verdadeiro cisco no olho.

sábado, 8 de março de 2025

 


A festa no céu

            A gaivota mergulha e bica o peixe, antes que este coma outros peixes. O urubu brilha nas alturas procurando podre. Andorinhas bailam, ao entardecer, consumindo insetos. A festa no céu anda de braços dados com a carnificina do existir.

domingo, 2 de março de 2025

 

Nádegas

            As nádegas são mais solenes do que as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de uma bunda. A função da bunda é a de despertar desejos, encantos, além de proporcionar à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Para o homem a bunda da mulher não tem outra função senão a de despertar desejo e de sentar.

            A nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo que pode ser dito em solenidades.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

 

O vento pedia luz

            Hoje eu acordei nas adjacências da alma, e não entendi porque o vento pedia luz.       Foi na roda da bicicleta que ele pousou, e ela, estática, apesar de uma forte coceira no pedal do lado esquerdo, permaneceu quieta ali, em silêncio, com medo do vento sair para ventar em outras paragens.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

 

Gagá

            Eu espero viver ainda por muitos anos, até ficar gagá. Seria maravilhoso xingar pessoas, cuspir no chão, parar o trânsito com a bengala. Isso não tem acontecido. Ainda sou cordial. Primo pelo respeito às normas estabelecidas. Ainda estou consciente. Às vezes deslizo na falta de compostura, mas não deixo que ninguém note. Minha perspectiva de gagazisse tem diminuído de acordo com a perspectiva de toda a humanidade. Não é um mérito adiar a gagazisse, e sim, contingencias da época em que vivemos. Contingências de um mundo com suas cápsulas e tratamentos geriátricos. Claro que esse mundo  só é alcançado por uma parte ínfima da população, e eu, pretensiosamente, me incluo nele. 

            Já passou da hora. Não consigo mais ser respeitoso e cordial.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

 

O canto das sereias

            Não adianta o vaga-lume estrelar a noite. Não adianta a borboleta encantar o dia. Nada detém a fúria dos homens. A humanidade é um desastre progressivo. Só alguns poucos ouvem o canto das sereias.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

 

Feio

            Eu não sei se a flor é linda porque a gente quer que ela seja ou porque ela é linda e pronto. A flor, uma rosa, é, até certo ponto, feia e sem razão de ser. Pétalas vermelhas, brancas, amarelas, rosas, umas por cima das outras, e aqueles espinhos, sempre prontos a espantar herbívoros e a furar os nossos dedos. A flor é feia. É duro constatar. Agora eu fiquei triste. Gente é feio, gente é horrível, gente é necessário. Um braço é a coisa mais feia que existe. Um rosto, o nariz com dois buraquinhos que ás vezes escorre é muito feio. A orelha é horrorosa, e ainda por cima cresce com o tempo. Só não é feia as orelhas, os braços e o nariz da mulher amada. Os órgãos sensoriais, separadamente, ou a falta de um deles no conjunto da obra é um desastre. Sobre a língua, nem é bom comentar.

            O chocolate é muito gostoso, mas um pedaço de chocolate amolecido, espalhado com o dedo sobre um vaso sanitário é repugnante. Até o cheiro de merda exala no ar. Tudo é uma ilusão. Uma manhã de sol encanta mais do que tudo isso, porque a manhã de sol é só a manhã de sol, e o sol, sábio como é, nem permite que a gente fixe o olhar nele para acha-lo também feio. Manhã de sol é mais uma ilusão. Baseado nessa constatação, há de se considerar que a rosa também é uma ilusão, como a manhã de sol, só que ela não nos ofusca com a sua claridade.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

 

Carros

            Passa um carro movido a barulho. Logo, um outro movido a fumaça. Um terceiro se move em xingamentos, um outro é movido a imprudência. Temos os que exalam amor, os que excedem na alegria e os que disseminam a discórdia. Entre vários outros, temos os que se movem em direção à morte. Estes sim, causam um grande movimento no movimento dos carros.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

 

Se o mundo fosse das crianças

            Brincadeira de criança: sal na lesma a deixa pequenina. Ninguém se incomoda com o sofrimento dela. Correr para chutar pássaros é melhor do que admirá-los. Chamar vesgo de vesgo, aleijado de aleijado, gordo de gordo, sem pensar nas consequências, sem piedade, é tarefa das crianças.

            Esse é apenas um estágio, antes delas se tornarem cidadãs de bem. Se o mundo fosse das crianças ele seria bem pior.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

 

Tema de fato

         Um fio de cabelo desprendeu-se de mim e colou na poesia. Ficou lá, feito um cabelo no prato. Eu revi meus conceitos, e o cabelo, virou tema de fato.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

 

Os sinos tocaram em vão

            Os sinos tocaram em vão, e ninguém foi capaz de ouvi-los, pois a lua sumiu no céu e todos se ocuparam da sua ausência.

            Era um presságio, diziam alguns. Era o fim do mundo, diziam outros. O padre ficou indignado. É apenas um eclipse, ele dizia.  Os pombos acordaram assustados e, sem entender a confusão, passaram a fazer sexo nas colunas da entrada principal da Catedral. Só o mendigo louco, que olhava sorrindo para os pombos, entendeu que naquele momento o melhor a fazer era o que eles faziam nas colunas da entrada principal da Catedral.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

 

Espelho

            Um espelho, numa casa vazia, reflete monotonia, até quando uma mosca inicia suas inspeções costumeiras, fazendo movimento nos dois compartimentos.

sábado, 25 de janeiro de 2025

 

Pesca esportiva

            Na pesca esportiva se devolve o peixe ao mar. Atitude nobre, pois aquela pesca é só brincadeira. Não vamos matar os pobrezinhos. Vamos apenas furar os seus olhos, ao tirar os anzóis, antes de jogá-los novamente no mar.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

 

Nádegas

            As nádegas são mais solenes do que as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de encantar a libido dos homens. A função verdadeira da bunda é a de proporcionar à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só!  Mas os homens têm grande interesse nelas.

            A nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo que pode ser dito em solenidades. 

sábado, 18 de janeiro de 2025

 

            O casal era um. Tinham afinidades intelectuais, corriqueiras, afetivas, sexuais, e viviam num Olimpo. Isso é importante dizer: viviam num Olimpo e ninguém os afetavam.

            Isso durou muito tempo, por muitos anos, mas cumplicidade, felicidade, alegria, nunca são eternos. Estão sempre se reciclando, mostrando-nos a que viemos, mostrando-nos que se vivermos eternamente num paraíso, não evoluiremos, não alcançaremos os níveis mais elevados, não acumularemos riquezas e objetos como todos fazem.

            Então toda a cumplicidade que o casal alcançou por mérito próprio, por terem sensibilidade e disposição para a felicidade, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme a inveja, o egoísmo, e agora seus filhos, já casados, vivem num olimpo e ninguém é capaz de afetá-los.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

 

Nunca mais

            Eu ia escrever sobre o urubu. Estava com tudo já definido dentro da cabeça e não anotei. Perdi o texto. Eu acho que ia dizer que o urubu, apesar de toda a repugnância que nos transmite, causa grande admiração à urubua e aos urubinhos. Era tudo diferente e muito poético. Perdi o texto. Nunca mais.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

 

Um dos dois há de vencer

            Uma abelha entrou pela janela. Eu soprei, ela saiu. Entrou novamente. Eu soprei, ela saiu. Voltou determinada. Eu soprei, não adiantou. Eu peguei umas folhas de jornal. Ia estraçalhá-la. Ela saiu.

            Nessa hora não existe mel, fecundação das plantas, beleza da fauna. Nessa hora prevalece o desejo de não ser incomodada e o desejo de não ser picado. Um dos dois há de vencer a batalha.

domingo, 5 de janeiro de 2025

 

O mundo girando

            Um dia nascendo, sem nada de novo. Um homem morrendo, matando o seu povo. Uma chuva forte, um sol que atrapalha. Um grito de morte, possessão que valha. Um momento alegre passa sem se ver, pra uma vida breve, temos que nascer. Um dedo indicando qualquer coisa errada, um sábio chorando por não saber nada. Um burro pastando, um rato a roer. Um boi ruminando pra poder viver. E o mundo girando, querendo girar. E a gente passando, sem querer passar.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

 

O dique

O dique transbordou, despejando sobre os seus pés a lama que ele acumulara durante todos esses anos.

Na clínica, após o procedimento, ele não tinha consciência do que realmente acontecera, mas as pessoas que cuidaram dele lhe disseram que o processo foi longo e dolorido.

Como ele não se lembrava de dor e sofrimento, logo iniciou um novo processo de acumulação de lama, e permanecerá assim até que o dique transborde novamente.

É na lama que ele consegue se situar melhor.

domingo, 22 de dezembro de 2024

 

A massa enlatada

         Sou uma massa enlatada. Cérebro, alma, vísceras, defeitos, tudo espremido lá dentro. Os demônios estão na lata. Quero sair noite adentro, preciso me libertar.

         Preciso de um abridor de latas.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

 

Voar como os pássaros

            Iniciei uma jornada com o vento. Ele me levava para um lado, eu insistia em ir para o outro. Ele me puxava, eu resistia. Ele faltava e eu, desesperado, tentava permanecer lá em cima. Depois eu mergulhava e ele deixava. Logo eu me aprumava e nós experimentávamos, por alguns instantes, a paz. Ao entardecer, eu tomava a linha, guardava a pipa e despassarinhava para a noite chegar.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

 

Universo em construçãoUniverso em construção

            As oportunidades estão aí para serem abraçadas. Uns abraçam poder, objetos, condição. Eu abraço o inexistente, e faço dele um universo em construção.

            

domingo, 8 de dezembro de 2024

 


Minhocas na cabeça

            Ando com minhocas na cabeça. Elas revolvem lá dentro as cores e as palavras. De repente, jorram palavras soltas que eu desarrumo para não ter dúvidas. Jorram também cores, que eu espremo, umas com as outras, dando-lhes disfunção acadêmica. As minhocas me ajudam a brincar com a lógica e dar desimportância às coisas sérias da vida.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

 

Mundo bobo

            Vivemos num mundo bobo. As necessidades superam o observar, o sentir, o prazer. Eu concreto, não abstraio. Eu realinho, não voo. Eu fabrico, não arto. Eu ignoro, não sinto. Eu balelo, não poemo. Eu canso.



sábado, 30 de novembro de 2024

 

Agora que sou mais novo

            Quando eu era mais velho, e bem responsável, tudo funcionava de acordo com os padrões de funcionalidade. Vento era vento e pronto. O vento não lambia a copa das árvores, nem deixava que uma borboleta se debruçasse sobre as suas asas para cumprir o seu processo de migração.

            Eu era de pedra e não sabia, porque pedra, nessa época, era apenas um mineral sólido. Ela não enchia os vazios dos calangos.

            Agora que sou mais novo, eu não deserto mais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

 

Comida de lagarto

            O louva-a-deus, na copa da árvore, suplicava carinho, atenção. O lagarto subiu na árvore. Suplicava comida. De uma linguada trouxe o louva-a-deus para dentro da sua boca, e ficou, por alguns instantes, com aquele volume forçando-lhe as bochechas. Só as mãos postas do louva-a-deus ficaram pra fora.

            Suas preces não foram atendidas.

sábado, 23 de novembro de 2024

 

Eu só fui piorando

            Aquele senhor meio louco, que andava a conversar com pedras e tentava compartilhar com as coisas do chão o cheiro do mar, era eu. Todos, em vão, tentaram me consertar. Eu só fui piorando, e hoje, monto na ventania e saio a passear pela noite chuvosa.

            Eles dizem que isso é pior do que ver televisão.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 

As sete notas musicais

            As sete notas musicais libertam-se do piano, misturando-se umas com as outras,  transformam o silêncio em deslumbre chopiniano.

sábado, 16 de novembro de 2024

 

A inexistência do amor

            Na minha vida não existia o amor. Quando ele chegou, trazendo o desejo, a incerteza, o desespero, a alegria, tudo ao mesmo tempo, eu até senti saudades da sua beleza, quando ele não existia, mas não demorou muito e logo tudo isso impulsionou o tremular das asas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

 

Meio termo

            A noção de ridículo priva o homem de exercer toda a sua liberdade. A falta dela transforma o homem no idiota da aldeia. Há de se considerar um meio-termo. 

sábado, 9 de novembro de 2024

 

Completude

            Dois corpos, possuídos de completude, desmoralizam a rigidez do tempo, a harmonia das horas, o fardo de existir, e provam que é possível ouvir o clamor das estrelas e o canto das normas não estabelecidas.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

 


Germes

         Quando eu morrer, logo serei germes - milhares deles - e hei de cumprir a função de comer as taboas do caixão.

         E quando eu morrer germes, me multiplicarei?

         Não sei!


sábado, 2 de novembro de 2024

 

Protesto

             Preciso escrever sobre coisas, sobre casos, sobremaneira, sobretudo, sobremesa, sobressalente. Preciso abrir as asas e voar para bem longe dos meus pés, dos meus dentes, do meu olfato. Preciso sair correndo, correndo sem estar fuginfo, correndo para encontrar a iluminação intelectual que me falta. Tenho que sair da bolha escura, dizer boceta sem autocrítica, sem achar que estou sendo vulgar, banal, pornográfico. Preciso achar o caminho das pedras sobre as águas do rio, sem que ninguém perceba o engodo. Preciso dizer puta que pariu em voz alta, escrever em voz alta, ouvir a minha voz alta no pensamento ao escrever filho da puta. Eu não cuspo nos desafetos. Já não existem mais jornais para cuspir na foto deles como fazia o meu sogro, um grande jornalista reacionário mineiro, que participou e documentou a política nacional desde a época da ditadura de Getúlio Vargas, seu amigo.      

            Mas para quem quer fugir eu estou voltando para detalhes insignificantes do passado. Para quem quer sair daqui, alcançar a liberdade de outras linguagens, eu estou voltando. Se eu estivesse no mato, estaria falando sobre o rio, o vento, o sol. Se estivesse na praia falaria sobre a maresia implacável corroendo tudo o que é de ferro, mas não! Eu estou na cidade, no centro dela. Agora ouço uma sirene. Deve ser uma ambulância. Esse é o caminho para o Pronto- Socorro. Eu estou no centro. Em frente à minha janela, do outro lado da rua, estão construindo um prédio de 12 andares. Já tem janelas, vidros, lajotas claras nas paredes e estão concluindo os jardins da entrada. Logo colocarão uma cerca. Que seja uma grade para que não escureça a paisagem. Os pedreiros martelam, os carros passam. Estou escrevendo como escrevia no Rio, na década de 70, quando reclamava da cidade, mas maravilhado de estar nela. O tempo passou. Eu estou aqui em outra cidade, reclamando do mesmo jeito. Nada mudou. Nada muda. Só que agora eu estou reclamando da minha falta de imaginação para escrever, pintar, desenhar. A burrice da humanidade ao lidar com a natureza está me afetando. Isso deveria me incentivar, não me destruir.

            Pelo menos eu tenho a cidade para culpar, mesmo que não seja ela.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

 

Aparência

         Eu pareço uma pessoa séria. Devido a esta aparência, todos me respeitam e eu dou grande valor a isto. Ninguém sabe quem sou eu. Esta aparência austera esconde uma certa insegurança. Eu jamais revelarei meus sentimentos mais íntimos. No fundo, atrás da aparência, está um homem comum, que se sensibiliza e chora, sem que ninguém perceba, ao assistir a um filme onde é negado um osso a um cachorrinho vira-lata.

sábado, 26 de outubro de 2024

 

A árvore do conhecimento

         A árvore do conhecimento era a macieira. Era proibido comer a fruta que ela nos proporcionava, apesar de ela produzir uma fruta muito palatável. Nós preferimos o conhecimento à possibilidade da vida eterna. Preferimos o conhecimento a ficarmos babando bestamente num lugar maravilhoso, sem saber o que se passava ao nosso redor.

         Foi daí que vieram os desejos inalcançáveis, as futricas, a necessidade de ser mais, a inveja, mas tudo com muita intensidade. E no meio de tudo isso eu já não sei o que seria melhor: viver eternamente o gozo da alienação ou conviver com a burrice do mundo à nossa volta.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

 

Dívidas

        Um grande feito não é não dever nada a ninguém, e sim, não se preocupar com isto. Eu estou me referindo à dívidas porque hoje ouvi alguém dizer essa frase: “Não devo nada a ninguém”.  

        Ninguém tem que se vanglorias por não dever nada a ninguém. Isso seria a regra: ninguém deveria dever nada para aos outros. Mas a vida não é assim. Todos devem, até os bancos, com seus juros e taxas mirabolantes nos devem, e eu, quando não estou devendo, me sinto tão seguro que logo adquiro uma nova dívida pra me sentir incluso na honrosa casta dos devedores. 

sábado, 19 de outubro de 2024

 

O relógio

            O relógio está sempre trabalhando, sempre cumprindo a sua missão de determinar as horas. Trabalha como o pulsar dos nossos corações.

            Nós sentimos o coração batendo e às vezes é assustador. Dá vontade de pegá-lo no colo, cuidar dele, que bate incansavelmente, sem trégua, há vários anos.

            Só que o relógio está ali para determinar as horas, e nós, com nossos corações pulsantes, estamos sempre tentando nos livrar delas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

 

Imaginação

        Na sombra da memória vejo com dificuldade. São fleches de luz insinuando partes do seu corpo e da sua personalidade. Ela ainda não se apresentou. Me irrito! Não estou aqui para brincar de esconde-esconde num lugar escuro desse.

sábado, 12 de outubro de 2024

 

A fila anda

            Os jornais estão acabando. Daqui a pouco não serão mais publicados. O dinheiro, notas e moedas – quem diria? – também estão. É difícil encontrar troco, pois a maioria das transações são feitas de maneira virtual.

            Daqui a pouco o dinheiro, as bancas de jornais, os bancos, serão uma saudade, ou um alívio, como nós nos sentimos aliviados com o fim das máquinas de datilografia, os mata-borrões, os orelhões e as lanternas à pilha.

            Tudo isso perdeu a função prática, mas apesar do alívio, continuam tendo um lugar na nossa afetividade.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

 

Doce ilusão

            A felicidade, para uma criança, está em empurrar o carrinho do outro. Para um menino isso basta. Depois, quando você já não consegue empurrar o fracasso da sua vida, volta a ser criança e passa a empurrar os carrinhos dos outros. Falsas conquistas, doce ilusão.

sábado, 5 de outubro de 2024

 


Discutindo a relação

            Um casal vivia brigando por causa dos outro. Um dia eles resolveram pensar um pouco nos motivos dessas brigas e passaram a noite discutindo a relação. Ele dizia (sobre ele) que iria mudar, e que nunca mais iria mastigar apenas vinte e uma vezes ao dar uma garfada. Ela, vegetariana, gostou da promessa, e ele continuou dizendo (sobre os outros), que quando alguém insinuasse que ele estava sendo traído, não iria se importar, nem levaria essa negatividade para as discussões noturnas. Ela, por sua vez, disse (dela) que iria parar de se esfregar no almofadão da sala, deixaria de exigir que ele urinasse sentado para não sujar a tampa do vaso e nunca mais pediria roupa emprestada à mulher do seu amante.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

 

A ousadia

            A ousadia é um comportamento transgressor que, para o ousado, é só uma maneira de ser coerente num mundo completamente descompromissado com os indivíduos que o habitam.

sábado, 28 de setembro de 2024

 

As moscas

            Na sala vazia uma mosca voa zumbindo, acompanhada de várias mosquinhas silenciosas, refletidas no espelho trincado.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

 

Translado

O caixão, descendo no elevador, levava o defunto aprumado. Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali; de terno, sapatos engraxados, e aquelas flores querendo devorá-lo. Pareciam antecipar a função dos germes.

Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali, e naquele momento, as flores, algumas já despedaçadas sobre o morto, de pé, dentro do elevador, ainda procuravam a claridade.

O morto, indiferente, seguia em frente, sem se importar com o fato de que logo seria esquecido.



sábado, 21 de setembro de 2024

 

Ignorância

            Quanto mais conhecimento, maior o horizonte da ignorância. Eu procuro o conhecimento, mesmo sabendo que no fundo o que estou procurando é a comprovação de que realmente eu não sei de nada.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

 

Corpo presente

            A missa de corpo presente é o derradeiro compromisso do defunto. Uns odeiam. Custaram a chegar ali e ainda têm esse compromisso. Outros, os que queriam continuar aqui, tentam aproveitar o máximo desse momento de badalação.

sábado, 14 de setembro de 2024

 

Carências

        Um homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra, uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.

        Não sejamos limitados, isso não é o fim do mundo.

        Um homem pode muito bem viver sem dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não se interessará por dinheiro e será muito mais inteligente.

        Na falta de lixo os ratos poderiam limpar as cidades dos vômitos dos indignados.

        Os carrapatos podem procurar o cavalo em vez de vaca, e as pulgas, um gato.

        Os vermes podem comer os mortos-vivos pelas beiradas, e as minhocas, tentar a areia.

        As abelhas, os restos de Coca-Cola espalhados nas mesas de bar.

        Os peixes podem procurar os aquários, e as baleias os museus arqueológicos.

        Para tudo há uma solução.