quinta-feira, 30 de outubro de 2025

 

O Tempo II

         O tempo tem lá a sua maneira de enganar as pessoas. Distrai-nos com os acontecimentos, os mais maravilhosos, ou os mais escabrosos. Nós estamos sempre distraídos com coisas boas e ruins.
         Enquanto isso o tempo vai passando e quando a gente se assusta, lá se foram os fios de cabelo, os desejos íntimos,
e a gente passa a correr com o tempo, agora, consciente dele,
agora, tentando superá-lo, mas sabendo que nada conseguirá domá-lo

domingo, 26 de outubro de 2025

 

Se não existisse a morte

            Imagino-me em um filme, eu o ator, o criador, o diretor. Fácil viver lá dentro. Lá eu não tenho medo, eu represento o medo. Eu posso estar andando nos becos mais sórdidos e, de repente, ser hostilizado por um grupo de viciados. Minha reação pode ser infinita:  posso me impor, lutar até a morte, posso usar como arma a retórica, depende do texto, posso sair dali sem que ninguém me veja, posso até morrer que nada vai mudar (eu não vou morrer mesmo!) No fim eu troco de roupa e vou-me embora.

         Se não existisse a morte nós viveríamos eternamente dentro de um filme, sem medo, sem angústia, mas também, o nosso tédio seria bem maior.

  

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

 

Morrer como todo mundo

         Você é induzido a mentir como todos mentem, e se não o fizer, estará fora de um mercado próspero, que cresce a cada dia,
dando grande conforto aos mentirosos.
         Você é impingido a fingir, como todos fingem, e este é outro mercado promissor.
         Você sorri com o canto da boca, meneia a cabeça quando ironiza, disfarça um olhar de desaprovação, cospe em pensamento no rosto de um desafeto, bajula os poderosos, ignora os necessitados, necessita de cada centavo alheio, e justifica tudo isso
em nome de uma causa nobre: acumular o máximo de objetos possíveis para, no fim, morrer como todo mundo.

 

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

 

O poema

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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

 

Chuvas diferentes

            Chove na cidade. Chove no campo. As duas chuvas são diferentes:
a chuva da cidade multiplica os carros, entope bueiros, derruba árvores.
A chuva do campo abaixa a poeira, transforma pingos em deslumbrantes
gotas de cristal, e, quando passa, chama as borboletas para brincar
de roda com o sol.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

 

Velório

         Os meus livros estão mortos na gaveta. Existem sem servir
Para nada. Eu os visito e os velo como a uns defuntos. As pessoas os ressuscitarão, mas onde encontrá-las se eu também estou morto
esperando que alguém me ressuscite.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

 

O agora vazio

          Não falo de peixes, árvores, sabedoria dos incultos; comunhão.
         Falo de prédios, postes, árvores de rua; convenção. Falo de fio desencapado, carcaça de computador, sinais de trânsito; confusão.
         Falo também do tempo que não passa e do tempo que voa. Dois tempos distintos; solidão.
         Falo do tempo que não passa agora. Passa rápido o dia, o mês, o ano. Mas o agora não passa, e os agoras são insignificantes se comparados aos dias, meses e anos.
         O agora vazio não passa e não deixa o tempo passar. Depois o vazio deixa de existir e o dia, o mês e o ano passam apressados,
deixando-nos sem teto, sem rumo, sem porto, sem prumo.

sábado, 4 de outubro de 2025

 

Mulher bonita

A mulher bonita é sol, lua, noite estrelada, solidão.

A mulher bonita ama, se arruma, banha-se em jasmim, ilusão.

A mulheres bonita são bonitas por terem nascido assim, quinhão.

Sua beleza silencia, constrange, imbeciliza, admiração.

E as feias, que se acham bonitas, conseguem se igualar a elas na imaginação.