quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

 

O vento pedia luz

            Hoje eu acordei nas adjacências da alma, e não entendi porque o vento pedia luz.       Foi na roda da bicicleta que ele pousou, e ela, estática, apesar de uma forte coceira no pedal do lado esquerdo, permaneceu quieta ali, em silêncio, com medo do vento sair para ventar em outras paragens.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

 

Gagá

            Eu espero viver ainda por muitos anos, até ficar gagá. Seria maravilhoso xingar pessoas, cuspir no chão, parar o trânsito com a bengala. Isso não tem acontecido. Ainda sou cordial. Primo pelo respeito às normas estabelecidas. Ainda estou consciente. Às vezes deslizo na falta de compostura, mas não deixo que ninguém note. Minha perspectiva de gagazisse tem diminuído de acordo com a perspectiva de toda a humanidade. Não é um mérito adiar a gagazisse, e sim, contingencias da época em que vivemos. Contingências de um mundo com suas cápsulas e tratamentos geriátricos. Claro que esse mundo  só é alcançado por uma parte ínfima da população, e eu, pretensiosamente, me incluo nele. 

            Já passou da hora. Não consigo mais ser respeitoso e cordial.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

 

O canto das sereias

            Não adianta o vaga-lume estrelar a noite. Não adianta a borboleta encantar o dia. Nada detém a fúria dos homens. A humanidade é um desastre progressivo. Só alguns poucos ouvem o canto das sereias.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

 

Feio

            Eu não sei se a flor é linda porque a gente quer que ela seja ou porque ela é linda e pronto. A flor, uma rosa, é, até certo ponto, feia e sem razão de ser. Pétalas vermelhas, brancas, amarelas, rosas, umas por cima das outras, e aqueles espinhos, sempre prontos a espantar herbívoros e a furar os nossos dedos. A flor é feia. É duro constatar. Agora eu fiquei triste. Gente é feio, gente é horrível, gente é necessário. Um braço é a coisa mais feia que existe. Um rosto, o nariz com dois buraquinhos que ás vezes escorre é muito feio. A orelha é horrorosa, e ainda por cima cresce com o tempo. Só não é feia as orelhas, os braços e o nariz da mulher amada. Os órgãos sensoriais, separadamente, ou a falta de um deles no conjunto da obra é um desastre. Sobre a língua, nem é bom comentar.

            O chocolate é muito gostoso, mas um pedaço de chocolate amolecido, espalhado com o dedo sobre um vaso sanitário é repugnante. Até o cheiro de merda exala no ar. Tudo é uma ilusão. Uma manhã de sol encanta mais do que tudo isso, porque a manhã de sol é só a manhã de sol, e o sol, sábio como é, nem permite que a gente fixe o olhar nele para acha-lo também feio. Manhã de sol é mais uma ilusão. Baseado nessa constatação, há de se considerar que a rosa também é uma ilusão, como a manhã de sol, só que ela não nos ofusca com a sua claridade.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

 

Carros

            Passa um carro movido a barulho. Logo, um outro movido a fumaça. Um terceiro se move em xingamentos, um outro é movido a imprudência. Temos os que exalam amor, os que excedem na alegria e os que disseminam a discórdia. Entre vários outros, temos os que se movem em direção à morte. Estes sim, causam um grande movimento no movimento dos carros.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

 

Se o mundo fosse das crianças

            Brincadeira de criança: sal na lesma a deixa pequenina. Ninguém se incomoda com o sofrimento dela. Correr para chutar pássaros é melhor do que admirá-los. Chamar vesgo de vesgo, aleijado de aleijado, gordo de gordo, sem pensar nas consequências, sem piedade, é tarefa das crianças.

            Esse é apenas um estágio, antes delas se tornarem cidadãs de bem. Se o mundo fosse das crianças ele seria bem pior.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

 

Tema de fato

         Um fio de cabelo desprendeu-se de mim e colou na poesia. Ficou lá, feito um cabelo no prato. Eu revi meus conceitos, e o cabelo, virou tema de fato.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

 

Os sinos tocaram em vão

            Os sinos tocaram em vão, e ninguém foi capaz de ouvi-los, pois a lua sumiu no céu e todos se ocuparam da sua ausência.

            Era um presságio, diziam alguns. Era o fim do mundo, diziam outros. O padre ficou indignado. É apenas um eclipse, ele dizia.  Os pombos acordaram assustados e, sem entender a confusão, passaram a fazer sexo nas colunas da entrada principal da Catedral. Só o mendigo louco, que olhava sorrindo para os pombos, entendeu que naquele momento o melhor a fazer era o que eles faziam nas colunas da entrada principal da Catedral.