Espelho
Um espelho, numa casa vazia, reflete monotonia, até quando uma mosca inicia suas inspeções costumeiras, fazendo movimento nos dois compartimentos.
Nádegas
As nádegas são mais solenes do que
as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não
têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de
encantar a libido dos homens. A função verdadeira da bunda é a de proporcionar
à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Mas os homens têm grande interesse nelas.
A
nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo
que pode ser dito em solenidades.
O casal era um. Tinham afinidades
intelectuais, corriqueiras, afetivas, sexuais, e viviam num Olimpo. Isso é
importante dizer: viviam num Olimpo e ninguém os afetavam.
Isso
durou muito tempo, por muitos anos, mas cumplicidade, felicidade, alegria,
nunca são eternos. Estão sempre se reciclando, mostrando-nos a que viemos,
mostrando-nos que se vivermos eternamente num paraíso, não evoluiremos, não
alcançaremos os níveis mais elevados, não acumularemos riquezas e objetos como
todos fazem.
Então toda a cumplicidade que o casal alcançou por mérito próprio, por terem sensibilidade e disposição para a felicidade, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme a inveja, o egoísmo, e agora seus filhos, já casados, vivem num olimpo e ninguém é capaz de afetá-los.
Nunca
mais
Eu ia escrever sobre o urubu. Estava com tudo já definido dentro da cabeça e não anotei. Perdi o texto. Eu acho que ia dizer que o urubu, apesar de toda a repugnância que nos transmite, causa grande admiração à urubua e aos urubinhos. Era tudo diferente e muito poético. Perdi o texto. Nunca mais.
Um dos dois há de vencer
Uma abelha entrou pela janela. Eu
soprei, ela saiu. Entrou novamente. Eu soprei, ela saiu. Voltou determinada. Eu
soprei, não adiantou. Eu peguei umas folhas de jornal. Ia estraçalhá-la. Ela
saiu.
Nessa hora não existe mel,
fecundação das plantas, beleza da fauna. Nessa hora prevalece o desejo de não
ser incomodada e o desejo de não ser picado. Um dos dois há de vencer a
batalha.
O mundo girando
Um dia nascendo, sem nada de novo. Um homem morrendo, matando o seu povo. Uma chuva forte, um sol que atrapalha. Um grito de morte, possessão que valha. Um momento alegre passa sem se ver, pra uma vida breve, temos que nascer. Um dedo indicando qualquer coisa errada, um sábio chorando por não saber nada. Um burro pastando, um rato a roer. Um boi ruminando pra poder viver. E o mundo girando, querendo girar. E a gente passando, sem querer passar.