A pomba
A pomba encantou o
asfalto e encheu de orgulho o farelo de bolo. O automóvel atrapalhou tudo.
0 seu passado condena
Quando você começa a desprezar os jovens, pode saber que toda a juventude que existia aí se esvaiu. Você ficou velho e não se lembra ou não quer se lembrar de todas as inconsequências da sua juventude. É nesse momento que você, um sujeito perfeito, sem mácula na sua honradez, segura esse quinhão, como se os jovens de agora fossem diferentes dos jovens de outrora. O seu passado condena.
A galinha ideal
Olha,
Deus que me perdoe por dizer isso, mas com toda a perfeição da Sua criação, eu
acho que a galinha deveria dar o ovo, a carne e o leite. Seria maravilhoso ir
ao quintal ao amanhecer e ordenhar a galinha para complementar a mesa do café
da manhã. Isso, além de ser muito mais prático, nos livraria da flatulência das
vacas, que causam grandes transtornos, como o efeito estufa e o aquecimento
global.
Palavras
Às vezes algumas palavras que me vêm
à mente, conforme o meu ponto de vista, não estão de acordo com o seu
significado. São palavras, frases, nomes
próprios, que ficam incomodando o inconsciente. Claro que algumas têm o sentido
semelhante, e muitas dela um sentido completamente diferente:
Buraco
sem volta
A tendência é de que a idiotização da humanidade venha a piorar ainda mais, como vem piorando através dos séculos. A tecnologia, os meios de comunicação, usados com sabedoria, são muito eficientes para ajudar o homem na sua jornada, como na medicina, na agricultura, mas a internet, com todo o seu poder de comunicação, veio para normalizar a vulgaridade e a estupidez, e sem sombra de dúvidas está levando a humanidade para um buraco sem volta.
A Lua
A Lua virou cachorra. Já não tem dentes, não enxerga, nem ouve. Quando aponta no corredor, parece um bichinho de corda. Seu contato com o mundo se dá através do tato e do olfato. Ao perceber carinho, abana lentamente o rabo, apoia a cabeça sobre a minha perna, fecha os olhos e volta a encantar o céu.
O
suicida
Se você for se suicidar, escolha um dia nublado, já que exercerás um ato lúgubre. Não escolha um dia de sol, onde os pássaros cantam e as crianças brincam no parquinho. Não incomode os transeuntes, caindo de um prédio como um saco de farinha. Tenha dignidade na hora da morte. Se possível seja reservado: esfaqueie o seu pescoço no banheiro e se esforce para não emitir gemidos.
Os
sapatos
Finalmente ele deitou com os sapatos. Era tão limpo, tão higiênico, nunca imaginou que um dia o colocariam ali deitado, de mãos postas, cheio de flores ao redor, e os sapatos emergindo entre rosas, crisântemos, margaridas e copos-de-leite. Nesse momento ele ainda carregava, na sola dos calçados, as manchas das sujeiras da cidade
O rol
dos que não queriam e não foram
Bom
senso e senso comum
Os
relógios
O diabo e o bom Deus
O diabo saiu de cena. Ninguém mais o teme como antigamente. Hoje todos temem a Deus, como se Ele fosse vingativo e mau. Se Ele é todo amor, jamais castigará alguém. O diabo, aproveitando dessa mudança de foco, foi para os púlpitos disseminar o preconceito, o ódio, o medo, a descriminação.
Benesses
Fantasmas
pelados
Brincos
de ouro
Brincos de ouro enfeitam orelhas perecíveis. Orelhas perecíveis mutilam-se para suportar brincos de ouro. No fim as orelhas enfeitam o caixão. Os brincos de ouro ficam guardados. As orelhas, sem os brincos, dão sentido anatômico ao rosto do morto. Quem perde um brinco de ouro se desespera. Quem perde a cabeça vai preso.
Começar
de novo
O mundo está tão incompreensível que eu sempre coloco minhas observações negativas a respeito. Um dia, se algum sobrevivente achar essas observações boiando dentro de uma garrafa em um mar revolto, pode me achar pessimista, porque, quem conseguir sobreviver à grande catástrofe que está por vir, terá uma fase gloriosa, até se esquecer de todo o infortúnio e começar todo o processo de destruição novamente.
Ponto
de vista
O
intruso
O
princípio e o fim
Éramos
eu e aminha mulher. Tínhamos afinidades intelectuais, afetivas, corriqueiras,
sexuais, e vivíamos no Olimpo. Isso é importante dizer: vivíamos no Olimpo e
ninguém seria capaz de nos afetar. Isso durou por muito tempo, muitos anos, mas
cumplicidade, felicidade e alegria não são eternas, e um casal tem que se
reciclar. Se viverem eternamente num paraíso não evoluirão, não alcançarão os
níveis mais elevados, não acumularão riquezas e objetos como todos fazem.
Então
tudo que alcançamos por mérito próprio, por termos sensibilidade e disposição
para o belo, o amor, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme,
a inveja, e nós, de braços dados com o egoísmo e a mentira, finalmente
conseguimos nos tornar o que todos são.
Conceito e lama
Atento às insignificâncias, me desprendi do conchavo com as aparências e me joguei, viajando por bilhões de anos luz, sempre observando conceitos espúrios, e quando voltei, enlameado daquilo tudo, consegui entender que, conceito e lama andam de braços dados, e que conchavo e aparência nos transformam naquilo que os outros querem que a gente seja.
Perdemos o perônio
O
Amolador
Não quero amolação. Ninguém quer. Eu amolo às vezes, sem perceber que estou amolando. Só depois, quando a coisa passa, e eu consigo relaxar, é que percebo. Aí já amolei, como um amolador amola uma faca ou um tesoura. Ele mutila alguns objetos para dar excelência no resultado de seus usos. O amolador nunca percebe que está amolando uma faca, mas a faca percebe, pois, apesar de ficar brilhante e com um corte magnifico, perdeu alguns gramas do seu peso. Com o tempo ela vai afinando, afinando. Isso não é bom. Mas a faca também amola. Que o diga o porco, a galinha...
Não
pensar
O cisco
Tudo
tem o seu valor, até um cisco insignificante, principalmente se ele estiver
alojado no olho de uma pessoa. Ele pode leva-la ao hospital ou acabar com a
alegria de muita gente. Pode impossibilitar um presidente de pronunciar o seu
discurso, ou fazer com que um motorista encoste o seu carro no acostamento;
isso se ele já não tiver causado um grande acidente. O cisco tem seu valor. Um
cisco tem sua importância. Eu sou um cisco. Talvez o cisco do cisco, se
comparado à grandeza do universo.
A terra é um cisco, e eu, na terra, sou insignificante. É tão difícil aceitar a nossa insignificância, mas com o passar do tempo você vai virando um cisco verdadeiro, um cisco com significado, daqueles que exigem e incomodam: o verdadeiro cisco no olho.
Nádegas
As nádegas são mais solenes do que as bundas.
Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda,
têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de uma bunda. A
função da bunda é a de despertar desejos, encantos, além de proporcionar à sua
proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Para o homem a bunda da mulher
não tem outra função senão a de despertar desejo e de sentar.
A
nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo
que pode ser dito em solenidades.
O vento pedia luz
Hoje eu acordei nas adjacências da alma, e não entendi porque o vento pedia luz. Foi na roda da bicicleta que ele pousou, e ela, estática, apesar de uma forte coceira no pedal do lado esquerdo, permaneceu quieta ali, em silêncio, com medo do vento sair para ventar em outras paragens.
Gagá
Eu espero viver ainda por muitos anos, até ficar gagá. Seria maravilhoso xingar pessoas, cuspir no chão, parar o trânsito com a bengala. Isso não tem acontecido. Ainda sou cordial. Primo pelo respeito às normas estabelecidas. Ainda estou consciente. Às vezes deslizo na falta de compostura, mas não deixo que ninguém note. Minha perspectiva de gagazisse tem diminuído de acordo com a perspectiva de toda a humanidade. Não é um mérito adiar a gagazisse, e sim, contingencias da época em que vivemos. Contingências de um mundo com suas cápsulas e tratamentos geriátricos. Claro que esse mundo só é alcançado por uma parte ínfima da população, e eu, pretensiosamente, me incluo nele.
Já passou da hora. Não consigo mais ser respeitoso e cordial.
Feio
Eu não sei se a flor
é linda porque a gente quer que ela seja ou porque ela é linda e pronto. A
flor, uma rosa, é, até certo ponto, feia e sem razão de ser. Pétalas vermelhas,
brancas, amarelas, rosas, umas por cima das outras, e aqueles espinhos, sempre
prontos a espantar herbívoros e a furar os nossos dedos. A flor é feia. É duro
constatar. Agora eu fiquei triste. Gente é feio, gente é horrível, gente é
necessário. Um braço é a coisa mais feia que existe. Um rosto, o nariz com dois
buraquinhos que ás vezes escorre é muito feio. A orelha é horrorosa, e ainda
por cima cresce com o tempo. Só não é feia as orelhas, os braços e o nariz da
mulher amada. Os órgãos sensoriais, separadamente, ou a falta de um deles no
conjunto da obra é um desastre. Sobre a língua, nem é bom comentar.
O chocolate é muito gostoso, mas um pedaço de chocolate amolecido, espalhado com o dedo sobre um vaso sanitário é repugnante. Até o cheiro de merda exala no ar. Tudo é uma ilusão. Uma manhã de sol encanta mais do que tudo isso, porque a manhã de sol é só a manhã de sol, e o sol, sábio como é, nem permite que a gente fixe o olhar nele para acha-lo também feio. Manhã de sol é mais uma ilusão. Baseado nessa constatação, há de se considerar que a rosa também é uma ilusão, como a manhã de sol, só que ela não nos ofusca com a sua claridade.
Carros
Passa um carro movido a barulho.
Logo, um outro movido a fumaça. Um terceiro se move em xingamentos, um outro é
movido a imprudência. Temos os que exalam amor, os que excedem na alegria e os
que disseminam a discórdia. Entre vários outros, temos os que se movem em
direção à morte. Estes sim, causam um grande movimento no movimento dos carros.
Se o mundo fosse das crianças
Brincadeira de criança: sal na lesma
a deixa pequenina. Ninguém se incomoda com o sofrimento dela. Correr para
chutar pássaros é melhor do que admirá-los. Chamar vesgo de vesgo, aleijado de
aleijado, gordo de gordo, sem pensar nas consequências, sem piedade, é tarefa
das crianças.
Esse é apenas um estágio, antes delas se tornarem cidadãs de bem. Se o mundo fosse das crianças ele seria bem pior.