Brincadeira de
pássaros
Os pássaros utilizam-se do vento para
brincar com o sol e encantar o céu, ofuscando a vista de quem quer se
intrometer.
Os
relógios
O diabo e o bom Deus
O diabo saiu de cena. Ninguém mais o teme como antigamente. Hoje todos temem a Deus, como se Ele fosse vingativo e mau. Se Ele é todo amor, jamais castigará alguém. O diabo, aproveitando dessa mudança de foco, foi para os púlpitos disseminar o preconceito, o ódio, o medo, a descriminação.
Benesses
Fantasmas
pelados
Brincos
de ouro
Brincos de ouro enfeitam orelhas perecíveis. Orelhas perecíveis mutilam-se para suportar brincos de ouro. No fim as orelhas enfeitam o caixão. Os brincos de ouro ficam guardados. As orelhas, sem os brincos, dão sentido anatômico ao rosto do morto. Quem perde um brinco de ouro se desespera. Quem perde a cabeça vai preso.
Começar
de novo
O mundo está tão incompreensível que eu sempre coloco minhas observações negativas a respeito. Um dia, se algum sobrevivente achar essas observações boiando dentro de uma garrafa em um mar revolto, pode me achar pessimista, porque, quem conseguir sobreviver à grande catástrofe que está por vir, terá uma fase gloriosa, até se esquecer de todo o infortúnio e começar todo o processo de destruição novamente.
Ponto
de vista
O
intruso
O
princípio e o fim
Éramos
eu e aminha mulher. Tínhamos afinidades intelectuais, afetivas, corriqueiras,
sexuais, e vivíamos no Olimpo. Isso é importante dizer: vivíamos no Olimpo e
ninguém seria capaz de nos afetar. Isso durou por muito tempo, muitos anos, mas
cumplicidade, felicidade e alegria não são eternas, e um casal tem que se
reciclar. Se viverem eternamente num paraíso não evoluirão, não alcançarão os
níveis mais elevados, não acumularão riquezas e objetos como todos fazem.
Então
tudo que alcançamos por mérito próprio, por termos sensibilidade e disposição
para o belo, o amor, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme,
a inveja, e nós, de braços dados com o egoísmo e a mentira, finalmente
conseguimos nos tornar o que todos são.
Conceito e lama
Atento às insignificâncias, me desprendi do conchavo com as aparências e me joguei, viajando por bilhões de anos luz, sempre observando conceitos espúrios, e quando voltei, enlameado daquilo tudo, consegui entender que, conceito e lama andam de braços dados, e que conchavo e aparência nos transformam naquilo que os outros querem que a gente seja.
Perdemos o perônio
O
Amolador
Não quero amolação. Ninguém quer. Eu amolo às vezes, sem perceber que estou amolando. Só depois, quando a coisa passa, e eu consigo relaxar, é que percebo. Aí já amolei, como um amolador amola uma faca ou um tesoura. Ele mutila alguns objetos para dar excelência no resultado de seus usos. O amolador nunca percebe que está amolando uma faca, mas a faca percebe, pois, apesar de ficar brilhante e com um corte magnifico, perdeu alguns gramas do seu peso. Com o tempo ela vai afinando, afinando. Isso não é bom. Mas a faca também amola. Que o diga o porco, a galinha...
Não
pensar
O cisco
Tudo
tem o seu valor, até um cisco insignificante, principalmente se ele estiver
alojado no olho de uma pessoa. Ele pode leva-la ao hospital ou acabar com a
alegria de muita gente. Pode impossibilitar um presidente de pronunciar o seu
discurso, ou fazer com que um motorista encoste o seu carro no acostamento;
isso se ele já não tiver causado um grande acidente. O cisco tem seu valor. Um
cisco tem sua importância. Eu sou um cisco. Talvez o cisco do cisco, se
comparado à grandeza do universo.
A terra é um cisco, e eu, na terra, sou insignificante. É tão difícil aceitar a nossa insignificância, mas com o passar do tempo você vai virando um cisco verdadeiro, um cisco com significado, daqueles que exigem e incomodam: o verdadeiro cisco no olho.
Nádegas
As nádegas são mais solenes do que as bundas.
Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda,
têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de uma bunda. A
função da bunda é a de despertar desejos, encantos, além de proporcionar à sua
proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Para o homem a bunda da mulher
não tem outra função senão a de despertar desejo e de sentar.
A
nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo
que pode ser dito em solenidades.
O vento pedia luz
Hoje eu acordei nas adjacências da alma, e não entendi porque o vento pedia luz. Foi na roda da bicicleta que ele pousou, e ela, estática, apesar de uma forte coceira no pedal do lado esquerdo, permaneceu quieta ali, em silêncio, com medo do vento sair para ventar em outras paragens.
Gagá
Eu espero viver ainda por muitos anos, até ficar gagá. Seria maravilhoso xingar pessoas, cuspir no chão, parar o trânsito com a bengala. Isso não tem acontecido. Ainda sou cordial. Primo pelo respeito às normas estabelecidas. Ainda estou consciente. Às vezes deslizo na falta de compostura, mas não deixo que ninguém note. Minha perspectiva de gagazisse tem diminuído de acordo com a perspectiva de toda a humanidade. Não é um mérito adiar a gagazisse, e sim, contingencias da época em que vivemos. Contingências de um mundo com suas cápsulas e tratamentos geriátricos. Claro que esse mundo só é alcançado por uma parte ínfima da população, e eu, pretensiosamente, me incluo nele.
Já passou da hora. Não consigo mais ser respeitoso e cordial.
Feio
Eu não sei se a flor
é linda porque a gente quer que ela seja ou porque ela é linda e pronto. A
flor, uma rosa, é, até certo ponto, feia e sem razão de ser. Pétalas vermelhas,
brancas, amarelas, rosas, umas por cima das outras, e aqueles espinhos, sempre
prontos a espantar herbívoros e a furar os nossos dedos. A flor é feia. É duro
constatar. Agora eu fiquei triste. Gente é feio, gente é horrível, gente é
necessário. Um braço é a coisa mais feia que existe. Um rosto, o nariz com dois
buraquinhos que ás vezes escorre é muito feio. A orelha é horrorosa, e ainda
por cima cresce com o tempo. Só não é feia as orelhas, os braços e o nariz da
mulher amada. Os órgãos sensoriais, separadamente, ou a falta de um deles no
conjunto da obra é um desastre. Sobre a língua, nem é bom comentar.
O chocolate é muito gostoso, mas um pedaço de chocolate amolecido, espalhado com o dedo sobre um vaso sanitário é repugnante. Até o cheiro de merda exala no ar. Tudo é uma ilusão. Uma manhã de sol encanta mais do que tudo isso, porque a manhã de sol é só a manhã de sol, e o sol, sábio como é, nem permite que a gente fixe o olhar nele para acha-lo também feio. Manhã de sol é mais uma ilusão. Baseado nessa constatação, há de se considerar que a rosa também é uma ilusão, como a manhã de sol, só que ela não nos ofusca com a sua claridade.
Carros
Passa um carro movido a barulho.
Logo, um outro movido a fumaça. Um terceiro se move em xingamentos, um outro é
movido a imprudência. Temos os que exalam amor, os que excedem na alegria e os
que disseminam a discórdia. Entre vários outros, temos os que se movem em
direção à morte. Estes sim, causam um grande movimento no movimento dos carros.
Se o mundo fosse das crianças
Brincadeira de criança: sal na lesma
a deixa pequenina. Ninguém se incomoda com o sofrimento dela. Correr para
chutar pássaros é melhor do que admirá-los. Chamar vesgo de vesgo, aleijado de
aleijado, gordo de gordo, sem pensar nas consequências, sem piedade, é tarefa
das crianças.
Esse é apenas um estágio, antes delas se tornarem cidadãs de bem. Se o mundo fosse das crianças ele seria bem pior.
Os sinos tocaram em vão
Os sinos tocaram em vão, e ninguém
foi capaz de ouvi-los, pois a lua sumiu no céu e todos se ocuparam da sua
ausência.
Era um presságio, diziam alguns. Era o fim do mundo, diziam outros. O padre ficou indignado. É apenas um eclipse, ele dizia. Os pombos acordaram assustados e, sem entender a confusão, passaram a fazer sexo nas colunas da entrada principal da Catedral. Só o mendigo louco, que olhava sorrindo para os pombos, entendeu que naquele momento o melhor a fazer era o que eles faziam nas colunas da entrada principal da Catedral.
Nádegas
As nádegas são mais solenes do que
as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não
têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de
encantar a libido dos homens. A função verdadeira da bunda é a de proporcionar
à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Mas os homens têm grande interesse nelas.
A
nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo
que pode ser dito em solenidades.
O casal era um. Tinham afinidades
intelectuais, corriqueiras, afetivas, sexuais, e viviam num Olimpo. Isso é
importante dizer: viviam num Olimpo e ninguém os afetavam.
Isso
durou muito tempo, por muitos anos, mas cumplicidade, felicidade, alegria,
nunca são eternos. Estão sempre se reciclando, mostrando-nos a que viemos,
mostrando-nos que se vivermos eternamente num paraíso, não evoluiremos, não
alcançaremos os níveis mais elevados, não acumularemos riquezas e objetos como
todos fazem.
Então toda a cumplicidade que o casal alcançou por mérito próprio, por terem sensibilidade e disposição para a felicidade, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme a inveja, o egoísmo, e agora seus filhos, já casados, vivem num olimpo e ninguém é capaz de afetá-los.
Nunca
mais
Eu ia escrever sobre o urubu. Estava com tudo já definido dentro da cabeça e não anotei. Perdi o texto. Eu acho que ia dizer que o urubu, apesar de toda a repugnância que nos transmite, causa grande admiração à urubua e aos urubinhos. Era tudo diferente e muito poético. Perdi o texto. Nunca mais.
Um dos dois há de vencer
Uma abelha entrou pela janela. Eu
soprei, ela saiu. Entrou novamente. Eu soprei, ela saiu. Voltou determinada. Eu
soprei, não adiantou. Eu peguei umas folhas de jornal. Ia estraçalhá-la. Ela
saiu.
Nessa hora não existe mel,
fecundação das plantas, beleza da fauna. Nessa hora prevalece o desejo de não
ser incomodada e o desejo de não ser picado. Um dos dois há de vencer a
batalha.
O mundo girando
Um dia nascendo, sem nada de novo. Um homem morrendo, matando o seu povo. Uma chuva forte, um sol que atrapalha. Um grito de morte, possessão que valha. Um momento alegre passa sem se ver, pra uma vida breve, temos que nascer. Um dedo indicando qualquer coisa errada, um sábio chorando por não saber nada. Um burro pastando, um rato a roer. Um boi ruminando pra poder viver. E o mundo girando, querendo girar. E a gente passando, sem querer passar.