domingo, 13 de abril de 2025

 

O Amolador

            Não quero amolação. Ninguém quer. Eu amolo às vezes, sem perceber que estou amolando. Só depois, quando a coisa passa, e eu consigo relaxar, é que percebo. Aí já amolei, como um amolador amola uma faca ou um tesoura. Ele mutila alguns objetos para dar excelência no resultado de seus usos. O amolador nunca percebe que está amolando uma faca, mas a faca percebe, pois, apesar de ficar brilhante e com um corte magnifico, perdeu alguns gramas do seu peso. Com o tempo ela vai afinando, afinando. Isso não é bom. Mas a faca também amola. Que o diga o porco, a galinha... 

domingo, 6 de abril de 2025

 

Não pensar

            Hoje eu não quero pensar em nada. Não quero pensar em tempestade, nem em água fresca. Não quero pensar em morte, em vida, em sorte. Não quero pensar em mulher, em sexo, nem pensar em união. Não quero pensar em multidão, nem pensar em solidão. Não pensar em comunhão, nem pensar em satisfação. Nada de ciclovia, tampouco condução. Não quero pensar em cotovia, nem pensar em acomodação.
            Não quero pensar que não quero pensar.
            Não consigo.
            Vou tomar outro conhaque.

sábado, 29 de março de 2025

 

Pronto

Polípono,  polónopo,  patílogo

 Pecípito, podúboro, paléfico.

 Precípito, prontísquo, presépilo

Prismálogo, prontívoro, pronto!

quarta-feira, 26 de março de 2025

 

Isca de peixes

            A minhoca é inofensiva. Não tem o veneno da abelha, nem a picada da formiga. Ela só revolve a terra para que as plantas nasçam exuberantes. Com aquele seu gênio manso serve também para cobrir o anzol como isca para peixes.

quarta-feira, 19 de março de 2025

 






A bailarina da caixa de música

                     A bailarina da caixa de música esvoaça pelo ambiente. A música pode
ser a mesma de toda a vida, no entanto, única e prazerosa. A barra da saia da
bailarina já está gasta pelo atrito com a caixa, porém, a delicadeza de seus
movimentos a torna passarinho.

sexta-feira, 14 de março de 2025

 

O cisco

            Tudo tem o seu valor, até um cisco insignificante, principalmente se ele estiver alojado no olho de uma pessoa. Ele pode leva-la ao hospital ou acabar com a alegria de muita gente. Pode impossibilitar um presidente de pronunciar o seu discurso, ou fazer com que um motorista encoste o seu carro no acostamento; isso se ele já não tiver causado um grande acidente. O cisco tem seu valor. Um cisco tem sua importância. Eu sou um cisco. Talvez o cisco do cisco, se comparado à grandeza do universo.

            A terra é um cisco, e eu, na terra, sou insignificante. É tão difícil aceitar a nossa insignificância, mas com o passar do tempo você vai virando um cisco verdadeiro, um cisco com significado, daqueles que exigem e incomodam: o verdadeiro cisco no olho.

sábado, 8 de março de 2025

 


A festa no céu

            A gaivota mergulha e bica o peixe, antes que este coma outros peixes. O urubu brilha nas alturas procurando podre. Andorinhas bailam, ao entardecer, consumindo insetos. A festa no céu anda de braços dados com a carnificina do existir.

domingo, 2 de março de 2025

 

Nádegas

            As nádegas são mais solenes do que as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de uma bunda. A função da bunda é a de despertar desejos, encantos, além de proporcionar à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só! Para o homem a bunda da mulher não tem outra função senão a de despertar desejo e de sentar.

            A nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo que pode ser dito em solenidades.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

 

O vento pedia luz

            Hoje eu acordei nas adjacências da alma, e não entendi porque o vento pedia luz.       Foi na roda da bicicleta que ele pousou, e ela, estática, apesar de uma forte coceira no pedal do lado esquerdo, permaneceu quieta ali, em silêncio, com medo do vento sair para ventar em outras paragens.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

 

Gagá

            Eu espero viver ainda por muitos anos, até ficar gagá. Seria maravilhoso xingar pessoas, cuspir no chão, parar o trânsito com a bengala. Isso não tem acontecido. Ainda sou cordial. Primo pelo respeito às normas estabelecidas. Ainda estou consciente. Às vezes deslizo na falta de compostura, mas não deixo que ninguém note. Minha perspectiva de gagazisse tem diminuído de acordo com a perspectiva de toda a humanidade. Não é um mérito adiar a gagazisse, e sim, contingencias da época em que vivemos. Contingências de um mundo com suas cápsulas e tratamentos geriátricos. Claro que esse mundo  só é alcançado por uma parte ínfima da população, e eu, pretensiosamente, me incluo nele. 

            Já passou da hora. Não consigo mais ser respeitoso e cordial.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

 

O canto das sereias

            Não adianta o vaga-lume estrelar a noite. Não adianta a borboleta encantar o dia. Nada detém a fúria dos homens. A humanidade é um desastre progressivo. Só alguns poucos ouvem o canto das sereias.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

 

Feio

            Eu não sei se a flor é linda porque a gente quer que ela seja ou porque ela é linda e pronto. A flor, uma rosa, é, até certo ponto, feia e sem razão de ser. Pétalas vermelhas, brancas, amarelas, rosas, umas por cima das outras, e aqueles espinhos, sempre prontos a espantar herbívoros e a furar os nossos dedos. A flor é feia. É duro constatar. Agora eu fiquei triste. Gente é feio, gente é horrível, gente é necessário. Um braço é a coisa mais feia que existe. Um rosto, o nariz com dois buraquinhos que ás vezes escorre é muito feio. A orelha é horrorosa, e ainda por cima cresce com o tempo. Só não é feia as orelhas, os braços e o nariz da mulher amada. Os órgãos sensoriais, separadamente, ou a falta de um deles no conjunto da obra é um desastre. Sobre a língua, nem é bom comentar.

            O chocolate é muito gostoso, mas um pedaço de chocolate amolecido, espalhado com o dedo sobre um vaso sanitário é repugnante. Até o cheiro de merda exala no ar. Tudo é uma ilusão. Uma manhã de sol encanta mais do que tudo isso, porque a manhã de sol é só a manhã de sol, e o sol, sábio como é, nem permite que a gente fixe o olhar nele para acha-lo também feio. Manhã de sol é mais uma ilusão. Baseado nessa constatação, há de se considerar que a rosa também é uma ilusão, como a manhã de sol, só que ela não nos ofusca com a sua claridade.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

 

Carros

            Passa um carro movido a barulho. Logo, um outro movido a fumaça. Um terceiro se move em xingamentos, um outro é movido a imprudência. Temos os que exalam amor, os que excedem na alegria e os que disseminam a discórdia. Entre vários outros, temos os que se movem em direção à morte. Estes sim, causam um grande movimento no movimento dos carros.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

 

Se o mundo fosse das crianças

            Brincadeira de criança: sal na lesma a deixa pequenina. Ninguém se incomoda com o sofrimento dela. Correr para chutar pássaros é melhor do que admirá-los. Chamar vesgo de vesgo, aleijado de aleijado, gordo de gordo, sem pensar nas consequências, sem piedade, é tarefa das crianças.

            Esse é apenas um estágio, antes delas se tornarem cidadãs de bem. Se o mundo fosse das crianças ele seria bem pior.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

 

Tema de fato

         Um fio de cabelo desprendeu-se de mim e colou na poesia. Ficou lá, feito um cabelo no prato. Eu revi meus conceitos, e o cabelo, virou tema de fato.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

 

Os sinos tocaram em vão

            Os sinos tocaram em vão, e ninguém foi capaz de ouvi-los, pois a lua sumiu no céu e todos se ocuparam da sua ausência.

            Era um presságio, diziam alguns. Era o fim do mundo, diziam outros. O padre ficou indignado. É apenas um eclipse, ele dizia.  Os pombos acordaram assustados e, sem entender a confusão, passaram a fazer sexo nas colunas da entrada principal da Catedral. Só o mendigo louco, que olhava sorrindo para os pombos, entendeu que naquele momento o melhor a fazer era o que eles faziam nas colunas da entrada principal da Catedral.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

 

Espelho

            Um espelho, numa casa vazia, reflete monotonia, até quando uma mosca inicia suas inspeções costumeiras, fazendo movimento nos dois compartimentos.

sábado, 25 de janeiro de 2025

 

Pesca esportiva

            Na pesca esportiva se devolve o peixe ao mar. Atitude nobre, pois aquela pesca é só brincadeira. Não vamos matar os pobrezinhos. Vamos apenas furar os seus olhos, ao tirar os anzóis, antes de jogá-los novamente no mar.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

 

Nádegas

            As nádegas são mais solenes do que as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de encantar a libido dos homens. A função verdadeira da bunda é a de proporcionar à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só!  Mas os homens têm grande interesse nelas.

            A nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo que pode ser dito em solenidades. 

sábado, 18 de janeiro de 2025

 

            O casal era um. Tinham afinidades intelectuais, corriqueiras, afetivas, sexuais, e viviam num Olimpo. Isso é importante dizer: viviam num Olimpo e ninguém os afetavam.

            Isso durou muito tempo, por muitos anos, mas cumplicidade, felicidade, alegria, nunca são eternos. Estão sempre se reciclando, mostrando-nos a que viemos, mostrando-nos que se vivermos eternamente num paraíso, não evoluiremos, não alcançaremos os níveis mais elevados, não acumularemos riquezas e objetos como todos fazem.

            Então toda a cumplicidade que o casal alcançou por mérito próprio, por terem sensibilidade e disposição para a felicidade, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme a inveja, o egoísmo, e agora seus filhos, já casados, vivem num olimpo e ninguém é capaz de afetá-los.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

 

Nunca mais

            Eu ia escrever sobre o urubu. Estava com tudo já definido dentro da cabeça e não anotei. Perdi o texto. Eu acho que ia dizer que o urubu, apesar de toda a repugnância que nos transmite, causa grande admiração à urubua e aos urubinhos. Era tudo diferente e muito poético. Perdi o texto. Nunca mais.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

 

Um dos dois há de vencer

            Uma abelha entrou pela janela. Eu soprei, ela saiu. Entrou novamente. Eu soprei, ela saiu. Voltou determinada. Eu soprei, não adiantou. Eu peguei umas folhas de jornal. Ia estraçalhá-la. Ela saiu.

            Nessa hora não existe mel, fecundação das plantas, beleza da fauna. Nessa hora prevalece o desejo de não ser incomodada e o desejo de não ser picado. Um dos dois há de vencer a batalha.

domingo, 5 de janeiro de 2025

 

O mundo girando

            Um dia nascendo, sem nada de novo. Um homem morrendo, matando o seu povo. Uma chuva forte, um sol que atrapalha. Um grito de morte, possessão que valha. Um momento alegre passa sem se ver, pra uma vida breve, temos que nascer. Um dedo indicando qualquer coisa errada, um sábio chorando por não saber nada. Um burro pastando, um rato a roer. Um boi ruminando pra poder viver. E o mundo girando, querendo girar. E a gente passando, sem querer passar.