sábado, 30 de novembro de 2024

 

Agora que sou mais novo

            Quando eu era mais velho, e bem responsável, tudo funcionava de acordo com os padrões de funcionalidade. Vento era vento e pronto. O vento não lambia a copa das árvores, nem deixava que uma borboleta se debruçasse sobre as suas asas para cumprir o seu processo de migração.

            Eu era de pedra e não sabia, porque pedra, nessa época, era apenas um mineral sólido. Ela não enchia os vazios dos calangos.

            Agora que sou mais novo, eu não deserto mais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

 

Comida de lagarto

            O louva-a-deus, na copa da árvore, suplicava carinho, atenção. O lagarto subiu na árvore. Suplicava comida. De uma linguada trouxe o louva-a-deus para dentro da sua boca, e ficou, por alguns instantes, com aquele volume forçando-lhe as bochechas. Só as mãos postas do louva-a-deus ficaram pra fora.

            Suas preces não foram atendidas.

sábado, 23 de novembro de 2024

 

Eu só fui piorando

            Aquele senhor meio louco, que andava a conversar com pedras e tentava compartilhar com as coisas do chão o cheiro do mar, era eu. Todos, em vão, tentaram me consertar. Eu só fui piorando, e hoje, monto na ventania e saio a passear pela noite chuvosa.

            Eles dizem que isso é pior do que ver televisão.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 

As sete notas musicais

            As sete notas musicais libertam-se do piano, misturando-se umas com as outras,  transformam o silêncio em deslumbre chopiniano.

sábado, 16 de novembro de 2024

 

A inexistência do amor

            Na minha vida não existia o amor. Quando ele chegou, trazendo o desejo, a incerteza, o desespero, a alegria, tudo ao mesmo tempo, eu até senti saudades da sua beleza, quando ele não existia, mas não demorou muito e logo tudo isso impulsionou o tremular das asas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

 

Meio termo

            A noção de ridículo priva o homem de exercer toda a sua liberdade. A falta dela transforma o homem no idiota da aldeia. Há de se considerar um meio-termo. 

sábado, 9 de novembro de 2024

 

Completude

            Dois corpos, possuídos de completude, desmoralizam a rigidez do tempo, a harmonia das horas, o fardo de existir, e provam que é possível ouvir o clamor das estrelas e o canto das normas não estabelecidas.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

 


Germes

         Quando eu morrer, logo serei germes - milhares deles - e hei de cumprir a função de comer as taboas do caixão.

         E quando eu morrer germes, me multiplicarei?

         Não sei!


sábado, 2 de novembro de 2024

 

Protesto

             Preciso escrever sobre coisas, sobre casos, sobremaneira, sobretudo, sobremesa, sobressalente. Preciso abrir as asas e voar para bem longe dos meus pés, dos meus dentes, do meu olfato. Preciso sair correndo, correndo sem estar fuginfo, correndo para encontrar a iluminação intelectual que me falta. Tenho que sair da bolha escura, dizer boceta sem autocrítica, sem achar que estou sendo vulgar, banal, pornográfico. Preciso achar o caminho das pedras sobre as águas do rio, sem que ninguém perceba o engodo. Preciso dizer puta que pariu em voz alta, escrever em voz alta, ouvir a minha voz alta no pensamento ao escrever filho da puta. Eu não cuspo nos desafetos. Já não existem mais jornais para cuspir na foto deles como fazia o meu sogro, um grande jornalista reacionário mineiro, que participou e documentou a política nacional desde a época da ditadura de Getúlio Vargas, seu amigo.      

            Mas para quem quer fugir eu estou voltando para detalhes insignificantes do passado. Para quem quer sair daqui, alcançar a liberdade de outras linguagens, eu estou voltando. Se eu estivesse no mato, estaria falando sobre o rio, o vento, o sol. Se estivesse na praia falaria sobre a maresia implacável corroendo tudo o que é de ferro, mas não! Eu estou na cidade, no centro dela. Agora ouço uma sirene. Deve ser uma ambulância. Esse é o caminho para o Pronto- Socorro. Eu estou no centro. Em frente à minha janela, do outro lado da rua, estão construindo um prédio de 12 andares. Já tem janelas, vidros, lajotas claras nas paredes e estão concluindo os jardins da entrada. Logo colocarão uma cerca. Que seja uma grade para que não escureça a paisagem. Os pedreiros martelam, os carros passam. Estou escrevendo como escrevia no Rio, na década de 70, quando reclamava da cidade, mas maravilhado de estar nela. O tempo passou. Eu estou aqui em outra cidade, reclamando do mesmo jeito. Nada mudou. Nada muda. Só que agora eu estou reclamando da minha falta de imaginação para escrever, pintar, desenhar. A burrice da humanidade ao lidar com a natureza está me afetando. Isso deveria me incentivar, não me destruir.

            Pelo menos eu tenho a cidade para culpar, mesmo que não seja ela.