O queijo
O queijo
Um homem com poderes
Eu, segurando na barra da saia de minha mãe, observava, como
todos, o homem, a armar uma mesa perto do chafariz. Seus gestos eram ritmados e
precisos e o seu rosto expressivo, amedrontava a população.
Depois de colocar vários frascos de um remédio milagroso
sobre a mesa, não foi necessário discorrer por muito tempo sobre as qualidades
do produto, pois, logo todos se espremiam para conseguir um.
Mais tarde, depois de jantar
na casa do prefeito, o homem seguiu enganando, deixando para trás várias
pessoas curadas; não por realmente ser milagroso o seu remédio, e sim, pela sua
força de expressão e sua capacidade de representar.
Elas
Após um longo período em Amsterdam ela voltou, e logo iniciou
um processo de reconstrução da vida. Eu fazia parte dos seus planos, pois, me
procurou, porém, inexplicavelmente, depois de anos de solidão e sofrimento, ela
não me reconquistou, e eu não senti o que senti e sinto até hoje pela
fotografia que me fora deixada.
Rãs e princesas
Objetos cotidianos
Eu fiquei com o abajur pequeno, ela com as taças de cristal.
Eu com o jogo de toalhas amarelas, ela com o aparelho de chá. Peguei alguns
livros que não havia lido e uns CD’s. Ela ficou com o aparelho de som.
Na casa nova o abajur sem lâmpada ficou jogado num canto, As
toalhas me foram úteis, e os CD’s, sem o aparelho de som, ocupavam espaço na
estante empoeirada.
Um dia, uma outra chegou. Arrumou a casa, trouxe um aparelho
de som e alguns pertences que nos foram úteis.
O
sequestro
Sequestrei a mim mesmo e passamos o fim de semana na casinha de praia do meu tio pobre. Queria ficar sozinho à beira mar, queria a liberdade.
Já na casa, tentei limpar a poeira impregnada no assoalho
e nos móveis, e nessa hora alguns caranguejos entraram pelas frestas das tábuas da
varanda, colocando-me na situação ridícula de subir em uma cadeira e esperar,
pacientemente, que eles atravessassem a sala a procura de alimento. Mais tarde
o vento ocupou toda a casinha, e umas latas que ajudavam na proteção do telhado
despencaram, fazendo com que todos os outros animais, residentes ali,
participassem dos movimentos da casa.
Cumpri, pacientemente, minha determinação de
estar naquele lugar, e descobri que, ao contrário do que pensava, não são os
monstros da cidade, e sim, os minúsculos animais de pequenos lugarejos que me
causam tanto pavor.
A Mosca e Eu
A vontade aumentava e
eu ia blasfemando a fragilidade humana, essa necessidade de ingerir, digerir e
excluir. Ingerir às vezes sem necessidade, como se aproveitando o máximo da
derradeira refeição, e logo em seguida, excluir; se bem que poucas vezes em situações
inusitadas como a que eu me encontrava: caminhando, suando, blasfemando, mas
impossibilitado de tomar uma atitude.
Entrei numa
lanchonete. Não havia banheiro. Pelo menos não havia uma porta fora do balcão
que se pudesse julgar ser um banheiro. Lembrei-me dos lotes vagos que existiam
na cidade. Talvez uma moita e algumas folhas me fossem de grande utilidade
naquele momento.
Apertei o passo em
direção ao meu apartamento. Parei de blasfemar e passei a pensar em
Neurocirurgia Estereotáxica.
Não adiantou! No elevador, que felizmente estava vazio, um mosquito rodeou a minha calça branca, talvez procurando uma maneira de ingerir o que eu acabara de excluir.
Nudez
Quando eu chegava em casa, ia tirando as peças de roupa e deixando-as espalhadas pelos cômodos, só voltando a me vestir nas raras vezes em que saía novamente. Vivia a maior parte do tempo nua, até o dia em que um homem ligou, descrevendo pormenores da minha intimidade. Tomada por uma sensação incontrolável de pânico, passei a suspeitar de todos os homens da cidade, no entanto, o homem, arrependido, mandou-me uma carta se desculpando pelas suas fraquezas, prometendo não mais me importunar. Afirmou ter agido daquela forma por não ter encontrado a maneira adequada para dizer que me amava.
Eu senti que suas palavras eram
sinceras, e aos poucos, voltei a abrir a janela e a procurar, nas janelas dos
prédios vizinhos, algum vulto que o identificasse. Logo voltei a me despir, sem
que ele se manifestasse, e hoje, vivo na mais completa solidão.
Cadeira de Rodas
Doutor, não tente me animar. Da bengala ao par de muletas, convenhamos... Estou regredindo; ou melhor, estou evoluindo para a morte. Evoluindo para a vida seria da muleta à bengala, da bengala ao andar descompassado, e deste, ao corpo aprumado. Seria admirar as rugas se desfazendo com o tempo, os espaçados fios de cabelos brancos cedendo lugar a uma vasta cabeleira e as varizes sendo desmanchadas da minha anatomia. Evoluindo para a vida seria sentir os lábios enrijecendo, a arcada dentária se recompondo, e o sexo a me conduzir para fantasias alucinantes. Para mim, evoluir, hoje em dia, seria mudar de corpo, de rosto, de gestos, para melhor, e não, passar a viver na expectativa da mudança do par de muletas para a cadeira de rodas.
Recriminação
O
meu avô trouxe uma cadeira e após colocá-la à minha frente, olhou-me de tal
forma que eu me senti como se levitando, até sentar-me, apesar da minha vontade
ser a de estar longe daquela varanda. Ele entrou e pouco depois voltou com uma
xícara de café, colocando-a na mesinha ao lado da sua cadeira.
Sem dizer
uma palavra, entrou novamente, e eu, com uma enorme necessidade de abstrair-me,
passei a observar uma mosca que pousara na xícara. Ela caminhava vagarosamente
para um lado e para o outro, até quando eu abafei com a mão a borda da xícara,
afogando-a no café.
Logo depois
o meu avô chegou com a bola e alguns cacos de vidro da janela da sala e, após
sorver o café, passou às acusações, sem imaginar o que eu colocara dentro do
seu corpo para me ajudar a suportar tudo aquilo.
A
Onda Gigantesca
Quando Thais acordou, sentiu uma fisgada no joelho, porém, notou que seus braços estavam engessados, impossibilitando-a de chegar até a perna para se coçar. Olhou para o quarto do hospital, e, de barulho, apenas o gotejar de uma torneira vindo de uma porta entreaberta. Havia muitos aparelhos à sua volta, muitos fios e tubos ligados ao seu corpo, todos funcionando em silêncio, tentando mantê-la viva. Ela não conseguia se lembrar do que acontecera. Não se lembrava e torcia para que ninguém chegasse ali para lembrá-la. No entanto, uma forte dor no pé esquerdo passou a incomodá-la, até fazer com que as lembranças despencassem-lhe sobre a cabeça como uma onda gigantesca, remontando a horrível cena dos bombeiros serrando as suas pernas para livrá-la das ferragens do metrô.