sábado, 19 de outubro de 2024

 

O relógio

            O relógio está sempre trabalhando, sempre cumprindo a sua missão de determinar as horas. Trabalha como o pulsar dos nossos corações.

            Nós sentimos o coração batendo e às vezes é assustador. Dá vontade de pegá-lo no colo, cuidar dele, que bate incansavelmente, sem trégua, há vários anos.

            Só que o relógio está ali para determinar as horas, e nós, com nossos corações pulsantes, estamos sempre tentando nos livrar delas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

 

Imaginação

        Na sombra da memória vejo com dificuldade. São fleches de luz insinuando partes do seu corpo e da sua personalidade. Ela ainda não se apresentou. Me irrito! Não estou aqui para brincar de esconde-esconde num lugar escuro desse.

sábado, 12 de outubro de 2024

 

A fila anda

            Os jornais estão acabando. Daqui a pouco não serão mais publicados. O dinheiro, notas e moedas – quem diria? – também estão. É difícil encontrar troco, pois a maioria das transações são feitas de maneira virtual.

            Daqui a pouco o dinheiro, as bancas de jornais, os bancos, serão uma saudade, ou um alívio, como nós nos sentimos aliviados com o fim das máquinas de datilografia, os mata-borrões, os orelhões e as lanternas à pilha.

            Tudo isso perdeu a função prática, mas apesar do alívio, continuam tendo um lugar na nossa afetividade.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

 

Doce ilusão

            A felicidade, para uma criança, está em empurrar o carrinho do outro. Para um menino isso basta. Depois, quando você já não consegue empurrar o fracasso da sua vida, volta a ser criança e passa a empurrar os carrinhos dos outros. Falsas conquistas, doce ilusão.

sábado, 5 de outubro de 2024

 

Discutindo a relação

            Um casal vivia brigando por causa dos outro. Um dia eles resolveram pensar um pouco nos motivos dessas brigas e passaram a noite discutindo a relação. Ele dizia (sobre ele) que iria mudar, e que nunca mais iria mastigar apenas vinte e uma vezes ao dar uma garfada. Ela, vegetariana, gostou da promessa, e ele continuou dizendo (sobre os outros), que quando alguém insinuasse que ele estava sendo traído, não iria se importar, nem levaria essa negatividade para as discussões noturnas. Ela, por sua vez, disse (dela) que iria parar de se esfregar no almofadão da sala, deixaria de exigir que ele urinasse sentado para não sujar a tampa do vaso e nunca mais pediria roupa emprestada à mulher do seu amante.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

 

A ousadia

            A ousadia é um comportamento transgressor que, para o ousado, é só uma maneira de ser coerente num mundo completamente descompromissado com os indivíduos que o habitam.

sábado, 28 de setembro de 2024

 

As moscas

            Na sala vazia uma mosca voa zumbindo, acompanhada de várias mosquinhas silenciosas, refletidas no espelho trincado.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

 

Translado

O caixão, descendo no elevador, levava o defunto aprumado. Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali; de terno, sapatos engraxados, e aquelas flores querendo devorá-lo. Pareciam antecipar a função dos germes.

Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali, e naquele momento, as flores, algumas já despedaçadas sobre o morto, de pé, dentro do elevador, ainda procuravam a claridade.

O morto, indiferente, seguia em frente, sem se importar com o fato de que logo seria esquecido.



sábado, 21 de setembro de 2024

 

Ignorância

            Quanto mais conhecimento, maior o horizonte da ignorância. Eu procuro o conhecimento, mesmo sabendo que no fundo o que estou procurando é a comprovação de que realmente eu não sei de nada.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

 

Corpo presente

            A missa de corpo presente é o derradeiro compromisso do defunto. Uns odeiam. Custaram a chegar ali e ainda têm esse compromisso. Outros, os que queriam continuar aqui, tentam aproveitar o máximo desse momento de badalação.

sábado, 14 de setembro de 2024

 

Carências

        Um homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra, uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.

        Não sejamos limitados, isso não é o fim do mundo.

        Um homem pode muito bem viver sem dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não se interessará por dinheiro e será muito mais inteligente.

        Na falta de lixo os ratos poderiam limpar as cidades dos vômitos dos indignados.

        Os carrapatos podem procurar o cavalo em vez de vaca, e as pulgas, um gato.

        Os vermes podem comer os mortos-vivos pelas beiradas, e as minhocas, tentar a areia.

        As abelhas, os restos de Coca-Cola espalhados nas mesas de bar.

        Os peixes podem procurar os aquários, e as baleias os museus arqueológicos.

        Para tudo há uma solução.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

 

Sem sentido

            O vazio invadiu a casa e o abismo virou sala. Tudo perdeu o sentido como realmente é. Eu me senti confortável na inutilidade das coisas. Um rio de despropósitos jorrou sobre mim, e eu, no abismo da sala, fui lavado pelo rio, que já não tinha importância.

sábado, 7 de setembro de 2024

 

O meu nome

                        O meu nome é Nerino. Esse nome me foi dado pelos meus pais. Suponhamos que eu já tenha vivido vidas passadas e tenha tido, em cada uma delas, um nome: João, Lorenzo, Haruki, Cheng Hao, Maria das Dores.

            Todos os nomes que me foram dados têm a sua importância pelo empenho de alguém para escolhê-los, mas quando eu voltar lá para cima, entre uma vida e outra, gostaria de saber qual o meu verdadeiro nome, qual o nome que eu sou conhecido pelos meus camaradas do lá do céu.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

 

A sombra

            O sol era intenso. Escondi-me debaixo de uma árvore. Cascas de cigarras ornamentavam o tronco. Alguns insetos, mortos de calor, fartavam a passarada. Uma cobra me assustou. Era uma festa de horror. Amedrontado, desisti de procurar abrigo debaixo da árvore e voltei para o sol.

sábado, 31 de agosto de 2024

 

Meu herói

            Será que o espermatozoide que me gerou teve que se esforçar, passar por cima de milhares de outros até fecundar o óvulo? Ou por estar muito bem preparado fisicamente chegou antes dos demais sem esforço?

            Será que se fosse outro espermatozoide qualquer, um dos milhares deles que tentaram fecundar o óvulo eu seria essa pessoa que escreve, desenha, que tem essa aparência, que pensa e age de uma forma única, diferente da forma única de todos os demais?

            Se for assim, se qualquer um daqueles milhares pudessem me gerar do jeito que eu sou, o meu espermatozoide gerador, o meu herói desde os tempos das aulas de biologia no científico perde completamente a importância, mas os outros adquirem o status de heróis, e qualquer uma deles poderiam ter ajudado a gerar esse grande camarada chamado Nerino.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 

Árvores e fios

            Árvores de rua submetem-se a fios. Primeiro os fios, depois as árvores. Árvores de rua são mutiladas para que os fios, intocados, continuem enviando sinais para as televisões.

sábado, 24 de agosto de 2024

 

Os de baixo

            Nós somo governados por uma pequena aristocracia. São os donos do nosso destino. Eles determinam o que vamos vestir, comer, onde trabalhar, definem o soldo reservado a cada um de nós, o governo que somos obrigado a aturar e as notícias, sempre exaltando-os subliminarmente.

            Muitos de nós, “os de baixo”, sentem-se como aristocratas, agem como aristocratas, sem dar importância para os seus pares, “os de baixo”.

            Essa atitude dos “muitos de nós” não incomodam os aristocratas, que se utilizam dessa conduta sonhadora para se fortalecerem.

            No tempo das cavernas, certamente o aristocrata seria o macho dominante, o mais forte, o primeiro a se alimentar de carne crua e das mulheres do bando.

            Hoje os aristocratas não aparecem muito. Vivem usufruindo dos frutos colhidos por nós, “os de baixo”.

            A verdade é que nós, através dos séculos, continuamos na ilusão de que um dia possamos alcançar a glória de sermos aristocratas.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

 

Aventura boba

            Viver é uma aventura, e nem todos são aventureiros. Os animais, sim, vivem a sua com intensidade. O ser humano vive uma aventura boba. Vive uma aventura cumulativa, e ainda por cima assiste televisão.

sábado, 17 de agosto de 2024

 

Os órgãos

                        A vagina é um órgão do sistema reprodutor feminino, como o pênis é o do masculino. Eles se entendem quando os seus portadores estão se entendendo. Às vezes esses portadores não estão se entendendo, estão até se odiando, circunstâncias da vida, mas depois de um certo tempo a vagina ou o pênis, ou os dois juntos sentem um grande prazer.                                                                                                                                                                                O prazer é uma sensação agradável, uma emoção, um estado de satisfação plena. Logo os dois órgão se libertam um do outro. O pênis sente uma grande necessidade de se prostrar, descansar, e a vagina, nem tanto. Ela está sempre querendo continuar, causando um grande desconforto ao portador do pênis. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

 

Jeans

            A calça jeans azuleja o corpo, mancha delineações estéticas e, quando velha, bem velhinha, permanece na nossa afetividade.

sábado, 10 de agosto de 2024

 

Carências

            Um homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra, uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.

            Não sejamos limitados, isso não é o fim do mundo.

            Um homem pode muito bem viver sem dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não se interesserá por dinheiro e será muito mais inteligente.

            Na falta de lixo os ratos poderiam limpar as cidades dos vômitos dos indigndos.

            Os carrapatos podem procurar o cavalo em vez de vaca, e as pulgas, um gato.

            Os vermes podem comer os mortos-vivos pelas beiradas, e as minhocas, tentar a areia.

            As abelhas, os restos de Coca-Cola espalhados nas mesas de bar.

            Os peixes podem procurar os aquários, e as baleias os museus arqueológicos.

            Para tudo há uma solução.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

 

Uma flor pegando a flor

            Eu vi uma mulher gorda tentando pegar uma flor que pendia de um galho. Ela, na ponta dos pés, com os braços esticados e o corpo aprumado, tentava pegar a flor, sem saber que naquele momento era ela a flor, que, com sua delicadeza, encantava um transeunte que a observava.

sábado, 3 de agosto de 2024

 

A chibata

O brejo se aproxima.

A chibata vai ao alto e desce como um raio.

O cavalo reage tentando alcançar o céu.

Relincha!

O homem cai de cabeça na pedra.

O cavalo se recompõe e sai a comer capim nas proximidades.


quarta-feira, 31 de julho de 2024

 

Sono

            Estou escrevendo, há várias horas, na lanchonete do Palácio das Artes. Estou cansado e com muito sono, mas vou continuar:

            “Um dia incontido, contanto que se conte o conto. Isso não conta neste cubículo calculado pelo pelo do paletó de pelúcia que pegou um pé de poeira e poluiu piolhos.”

            O olho fecha, a voz retumba na cabeça e o couro cabeludo continua intacto. Vou abaixar a cabeça em cima de uma folha e dormir, até que a dormência do braço me acorde para mandar-me para casa, onde dormirei na minha cama, lençóis cheirando à lavanderia, assoalhos brilhantes, reluzente, cortinas fechadas, abajur à meia luz, e nem um pernilongo para atrapalhar a paz. Obrigado!!!

sábado, 27 de julho de 2024

 

O belo no ar

            Eu procuro ouro no lixo, procuro pássaros a cantar. Procuro peixes no esgoto, procuro doce no mar. Eu não estou aceitando que tudo está a desmoronar. Eu procuro o belo no ar

quarta-feira, 24 de julho de 2024

 

Eu passo

            O tempo apressa o passo. Quanto mais apressa, mais eu passo.

sábado, 20 de julho de 2024

 

O desespero dos gansos

Estou sentado no parque. Chove. As árvores choram a falta do sol. Os gansos saíram do lago. Estão perfilados no gramado do teatro. Uma criança passa com a mãe. Cada um carrega um guarda-chuva. A criança parou para ver os gansos, que também choram a presença daquela criança estúpida, que logo os espantarão dali, entre gritos e pontapés.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

 

Palavras e significados

Caneta preta, caneta grossa, caneta azul, caneta fina. Lapiseira de ponta fina, lapiseira de ponta grossa, teclado, tudo serve, contanto que as ideias cheguem. Palavras, prismas, produtos, prosperidade, prospectos, prazer. Cada palavra com o seu sentido. Cada palavra com seu significado:

INSÍGNIA: Condecoração que se dá a mortos-vivos.

ESTABILIDADE: posição alcançada quando você já perdeu o entusiasmo para viver.

JUÍZO: Uma conquista pós-adolescência que o torna um chato.

JULGAR: Deliberar, na condição de juiz, coisas ou pessoas como se estivéssemos                                 sentenciando, na condição de juiz, a nós mesmos.

REORGANIZAR: Bagunçar tudo de novo.

           INSINUAR: Fingir que você não disse alguma coisa, quando realmente você não disse.

sábado, 13 de julho de 2024

 

Viver é bonito

Viver é bonito.
Um copo de vinho,
um naco de queijo,
um par, um carinho,
se possível um beijo.
Na hora é perfeito,
na hora é divino,
depois, ninguém sabe,
depois, só destino.
Viver é bonito.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

 

Vento e solidão

            Uma mosca sobrevoou o meu copo. Eu soprei. Ela voou sem rumo. O vento que eu utilizei não era meu. Eu apenas emprestei o meu corpo para a execução. O vento entrou, eu forcei os meus músculos para expulsá-lo e a mosca se foi. Isso há muito tempo, e agora, nem a mosca eu tenho para amainar a minha solidão.

sábado, 6 de julho de 2024

 

Alívio

                Quando ela se foi eu me senti como se me livrando de um sapato apertado. Foi um alívio e eu passei a caminhar descalço, à procura de um novo sapato que me fosse mais confortável.


domingo, 30 de junho de 2024

 

A dançarina do arame

            A dançarina do arame se contorce toda para manter-se de pé. Sua elegância é transmitida pelo guarda chuva que lhe dá suporte. Ali ela reina absoluta. Chega o momento em que a dançarina vira arame e nem o desconforto da música desafinada a faz desprender-se de lá.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

 

Virando na cama

            Acordo e vou correndo mato adentro de mim mora um anjo feito a cara escarrada do pai nosso que vai dar no fim da linha do trem bom de cama, bom de briga, bom de papo furado feitos um para o outro lado da cara de pau duro de roer a corda bamba que dorme novamente.

sábado, 22 de junho de 2024

 

Outras paisagens

            Quinta feira. Eu sentado sozinho à uma mesa. Bar cheio, quase todos acompanhados. À minha frente, em uma mesa com umas 15 pessoas, uma linda loura, parecida, mas muito mais bonita do que uma linda loura que eu conheço. Eu não tinha para onde olhar e acabava sempre olhando para ela. Ela conversava de uma maneira muito agressiva, e por não ter para onde olhar, acabava olhando para mim. Nós dois nos olhávamos apenas por estarmos de frente um para o outro. A sua agressividade tirava todo o seu encanto. Então eu continuei no bar, mas sentei na cadeira ao lado para apreciar outras paisagens.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

 

Flagelo

O sol pressentiu o caos e, covardemente, escondeu-se atrás das nuvens. Elas, agitadas, despejaram suas fúrias em restos de casas, móveis enlameados e no choro desesperado dos desabrigados.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

 

Irmãos

                São Francisco de Assis dizia que nós e os animais somos todos irmãos. O irmão Leão, a irmã Girafa, o irmão Tigre, o irmão Urso, as irmãs corujas, todos irmãos.

                Até aí aceita-se esses animais vigorosos sem preconceito, mas na lógica preconceituosa do ser humano, logo a coisa muda. Então vêm os irmãos de uma casta mais baixa. São os agregados, os irmãos de criação, como o macaco, a hiena, o bicho preguiça, o porco.

                Mas existem outros irmãos que sofrem de preconceito como os judeus sofreram na segunda guerra, os palestinos sofrem isolados no seu canto e os negros sofreram e sofrem até hoje. São as irmãs baratas, os irmãos morcegos, os irmãos gambás e os irmão germes, estes últimos, que apesar de limparem a terra dos nossos restos, são também vitimas dos preconceitos mais crueis.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

 

Anjo e banjo

            Todo anjo é bom. Pelo menos convencionou-se que é assim. Todo banjo tem som. Isto se ele não estiver estragado. Um anjo tocando banjo é uma convenção sem defeito.

sábado, 8 de junho de 2024

 

O chato

            Há dias em que você não quer ver ninguém, e justamente nesses dias os chatos resolvem telefonar ou aparecer. Você vai, pé-ante-pé, e constata, através do olho mágico, que é o chato! Enquanto você está pensando se vai ou não abrir a porta, o telefone toca. O telefone tem que ser atendido, pois pode ser alguma coisa grave. Você fica sem saber se continua a observar no olho mágico ou se vai atender, e meio desesperado, diz em voz alta: “espera ai um momentinho”. Corre para o telefone e diz: “espera ai um momentinho”. Volta correndo, abre a porta e antes mesmo de dizer que vai atender o telefone, o chato te abraça e te cospe todo, dizendo que você está ótimo. Quando você finalmente tenta dizer que vai atender o telefone ele diz que acabou de vir do cinema, e, pegando no seu braço, começa a contar o filme aos berros, acordando a sua filhinha recém-nascida.  A filha chora e o chato continua contando o filme até você se lembrar de que o telefone está para ser atendido, e quando corre para atendê-lo, se depara com um outro chato que, quando para de falar, o chato cinematográfico, desistindo de esperar, já partira sem se despedir.

            Aí você vai para o quarto, tentar ajudar a sua mulher a cuidar da filhinha chorona.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

 

Bola de sabão

            No emaranhado de imagens maquio a minha solidão. Às vezes o esforço para criar a imagem perfeita é desgastante, e quando ela aparece, em sua plenitude, tudo se transforma em realidade, e a solidão, mesmo sabendo que está sendo enganada, retira-se por alguns instantes, até que a imagem estoure, desaparecendo como uma bola de sabão.

domingo, 2 de junho de 2024

 



A cega

            A sua cegueira está focada em num homem só. Você só enxerga a cegueira em mim. Eu sou a sua escuridão, embora a sua luz me mantenha aceso. Você me ilumina, e apesar de toda a luz de que me alimento, não consigo livrar-te da sua escuridão.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

 

Escrever

            Eu gostaria de ficar escrevendo o tempo todo. Eu gosto de escrever e não gosto de falar. Eu não consigo falar, principalmente se todos quiserem me ouvir. Escrevendo, eu consigo me comunicar com várias pessoas ao mesmo tempo, e apesar de elas não estarem lendo os meus textos no momento em que escrevo, existe uma possibilidade de que um dia todos leiam, e dessa forma eu me sinta bem. Esse é o desejo de todo escritor.

             Escrever é bom, é particular, é criativo, é sensacional, e você que escreve pode ser um chorão, reclamar da vida, pode ser verdadeiro, mentiroso, poético ou escandaloso. E o principal: você pode ser você mesmo.

            Escrever é uma aventura.

sábado, 25 de maio de 2024

 

“PLOC”

                Um homem, ao sair do quarto escuro, pegou o chapéu e correu até a porta. Desesperado, tentava falar, sem conseguir. Sentia, há tempos, que começara a ficar mudo. Queria se libertar da vida que levava, e já na rua, abraçou o primeiro transeunte que encontrou. Por coincidência esse transeunte era eu, que nesse instante quase chorei de emoção diante daquele gesto nobre. Apertei-o contra o peito e ele ainda brincou, segurando o meu nariz entre os dedos. Eu espirrei três vezes e comecei a me coçar. Foi tudo muito rápido: cocei, cocei, e, de repente, a pele começou a se desfazer nas minhas mão, e logo em seguida a carne também. Eu tocava, aflito, os meus próprios ossos, e o couro cabeludo se desfez entre horror e lágrimas. Um dos meus globos oculares caiu como uma bola de gude e eu, olhando aquele olho no chão, com o olho que me restara, tive vontade de pisar para ouvir fazer “PLOC”.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

 

A memória de um morto

            O meu computador morreu. Eu o velo na mesa de vidro jateado. Levou consigo tudo o que eu não guardei na memória. As migalhas estão nas nuvens. Meu passado, meus sonhos, meus desejos, tudo isso confiei na memória de um morto.

sábado, 18 de maio de 2024

 

A sua cabeça

            A sua cabeça é imprevisível. Eu gasto muito tempo tentando decifrá-la. Sempre me iludo achando que sei o que acontece lá dentro. Ela, com razão, diz que eu não sei, mas na verdade, o que me interessa lá dentro é aquela confusão cativante.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

 

Objetos

            Lá vem o dia cheirando a carros. Poderia exalar o cheirar de uma rosa ou o da brisa do mar, e não o do azul do carro. Poderia brilhar o dia, não o brilho de faroletes, e sim, o brilho exuberante de uma belo manhã de sol. A fumaça nos impede disso. Lá vem o dia esbanjando objetos.

sábado, 11 de maio de 2024

 

Só ando com o necessário

            Eu não tenho nada. Não acumulei nada. Só ando com o necessário. Em vez de ter várias casas, contento-me com asas. Não quero ser grande, andar como se de salto-alto. Eu não acumulei riqueza. Sou rico de companhia. Não morro de amor por carros. Gosto de observar o caminho. Não quero poder. Quero poder ser.

            Mas eu tenho um cachorro.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

 

A roseira

            A roseira cobre-se sob um corpo de espinhos. Inventou este artifício para se proteger de herbívoros. O homem, carnívoro, deveria deixa-la em paz, mas inventou a tesoura para roubar-lhes as rosas e enfeitar as suas casas, usando algumas pétalas como marcadores de livros.

sábado, 4 de maio de 2024

 

O grande orgasmo

             Na verdade a vida aqui na terra deveria ter um final diferente do que acontece na maioria das vezes.  É sempre triste uma pessoa entubada esperando a morte num leito de hospital.

            Ao contrário do usual, nós deveríamos nascer e ter uma relação íntima conosco. Uma relação sexual. 

            Começaríamos nos descobrindo e usando de todas as possibilidades que a vida nos oferecesse para sentir prazer, e no fim, depois de muitos anos, já velhinhos, atingirmos o clímax, o ponto mais alto da nossa relação conosco: o grande orgasmo.

            E fim.

terça-feira, 30 de abril de 2024

 

Perdas e ganhos

A vida tem ido bem, apesar dos atropelos. Ontem eu fui atropelado por uma jamanta. Não foi nada grave. Fiquei sem três dedos do pé esquerdo, sem o pé direito (para ser mais preciso, da canela para baixo), sem o rim direito, perfurado pelo para-choque da jamanta e uma parte da orelha, também direita.

Como no atropelamento de anteontem eu já havia perdido a orelha esquerda, não liguei muito porque deu um certo equilíbrio no meu rosto sem nariz.

Parece mentira, mas a sorte, apesar de tudo, tem sorrido para mim. Outro dia eu estava andando na rua e olhei, sem querer, para a janela de um prédio, e lá estava ela, sorrindo, sorrindo. Ria que se mijava toda, e eu, meio encabulado, comecei a rir também: há, há, há, há...Há, há ,há, há ,há, há, há, há...Quááá quááá, quááá, há, há, há, há, há ,há.
            Fiquei lá, parado, rindo, e quando percebi que ela não estava rindo para mim, e sim rindo de mim, veio uma Kombi e PUFT! Fiquei sem quatro dentes da arcada superior direita e um bago; o esquerdo.

O chato é que quando eu me acostumo a andar mancando, nasce novamente o pé. Quando eu me sinto feliz por não ter mais que cheirar a podridão espalhada pela cidade, nasce novamente o nariz.

A vida é cheia de perdas e ganhos.

sábado, 27 de abril de 2024

 

Suçuaranas

            Estou sentado em um banco dos jardins do Palácio das Artes, onde na semana passada um homem me disse para sair porque as folhas da árvore que sobe atrás do banco estavam infestadas de suçuaranas. As folhas realmente estão comidas, porém, daqui não se vê suçuaranas, e sim, um lindo céu azul sem nuvens. As suçuaranas abriram o espaço para que eu possa observar o céu, e eu resolvi arriscar e me sentar debaixo das folhas comidas.

            Talvez eu esteja tentando me auto destruir, deixando que uma enorme suçuarana caia sobre mim e me devore em poucos minutos, e após ruminar na presença de curiosos assustados, cuspa, entre babas e gosmas, a minha roupa ensopada. Isso seria um grande acontecimento para um sábado que não promete nada.