quarta-feira, 27 de setembro de 2023

 

Mundo maravilhoso

O mundo é uma maravilha. Tirando as coisas que atrapalham, é uma maravilha. As árvores, os pássaros, todos os animais, enfim, tudo é maravilhoso. Uma cidade bem planejada, uma boa qualidade do ar para todos, educação e qualidade de vida para que os ânimos não se exaltem, boas condições de saúde, muita confraternização e amizade entre todos é que fazem desse mundo uma maravilha.

Às vezes alguém desanima, acha que o mundo não é tão maravilhoso como todos acham. Esses são os pessimistas que, só porque algumas árvores são cortadas, algumas fábricas emitem gazes tóxicos na atmosfera, alguns pássaros e abelhas morrem intoxicados, algumas escolas não cumprem o seu papel de ensinar e educar, e alguns hospitais não dão o mínimo de condições necessárias para que um cidadão tenha um tratamento adequado, não vêm que o mundo é maravilhoso.

        Quem não vê isso são os alienados que, se gastassem um pouco do seu tempo informando-se, atualizando-se, assistindo a um bom programa de televisão aos domingos, entenderiam que realmente o mundo é maravilhoso.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

 

Estamos em obra

            Estamos em obra, eu e a poesia. Escrevemos em um dos lados da cabeça (sem pena) para que a dispersão não se intrometa. No quarto escuro, só o barulho do ventilador de teto e as ideias indo e vindo como transeuntes apressados, e apesar de toda essa movimentação, não consigo coerência para concluir com dignidade os meus devaneios.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Pobre

            Uma pessoa nasce pobre. Por nascer pobre não se alimenta direito. Não se alimentando direito, não consegue se concentrar nos estudos como uma pessoa que se alimenta direito. Não estudando não terá uma profissão decente que lhe garanta a sobrevivência. Consequentemente continuará pobre. Provavelmente terá filhos que nascerão pobres, não se alimentarão direito; talvez nem concluam o Ensino Fundamental, e fatalmente terão outros filhos.

       Enquanto isto os artistas se autopromovem, os empresários disputam, os políticos mentem, os líderes religiosos induzem, as revistas manipulam, os dirigentes se dirigem, a sociedade se cala, os padres tomam chá e os pobres limpam a cidade dos restos jogados nas latas de lixo.

 

domingo, 17 de setembro de 2023

 

A cassiterita

A cassiterita é um nome que costuma aparecer na cabeça da gente sem que se saiba sequer o seu formato, a sua cor, sua nomenclatura. É claro que depois se descobre que é um mineral óxido de estanho (SnO2), geralmente opaca, sendo translúcida quando em pequenos cristais, com cor púrpura, preta, castanho-avermelhada ou amarela. Cristaliza no sistema tetragonal, com hábito prismático ou piramidal.

            Mas quando a gente se assusta, está com isto na cabeça, porque a cabeça, às vezes fica vazia, e vai dando aquele branco, e não vai saindo nada, e vai dando uma raiva porque todo mundo deveria ter boas ideias o tempo todo, e não somente quando está fazendo uma caminhada numa trilha, sem caneta e sem papel, e dá vontade de escrever com um graveto numa folha de árvore. Aí você não escreve e já em casa tenta desesperado lembrar-se do que era, pois aquela ideia era excelente e agora, no conforto do lar nada acontece além da palavra “cassiterita”.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023


 Filosofia barata

            O pingo da chuva, logo não existe como pingo, a não ser que a gente tente, sem êxito, acompanha-lo pela enxurrada. O pingo da chuva é uma ilusão, uma confusão. Não entendo mais nada. Vou abrir o guarda-chuva.

domingo, 10 de setembro de 2023


 O lobo encantado

É, parece até mentira, mas um dia chegou uma fada, não se sabe de onde, e encantou o lobo. Ele não sentiu nada quando a fada bateu a varinha nas suas costas, nem a ouviu dizer que ele seria bom e generoso para com os outros animais. Apenas viu algumas estrelinhas coloridas à sua volta e estranhou a sua reação diante da fada ali ao seu lado. Em outras circunstâncias ele teria avançado e talvez resolvido, ali mesmo, o seu problema de alimentação do dia.

Saiu andando calmamente e, ao ver um coelho, não sentiu vontade de caçá-lo. Foi em sua direção, e o coelho, de tanto medo, ficou paralisado, sem forças para correr. Então o lobo disse: 

- Aonde vais meu bom coelhinho?

Os outros animais assistiam a tudo e não acreditavam no que viam.

O coelho abaixou a cabeça e disse com voz baixa:

-Vou ao Sítio do Lago Claro, comer cenouras.

-Você não deve fazer isto, meu filho - disse o lobo - O Sr. Freitas trabalhou muito para plantar as cenouras. Você não pode chegar lá, assim sem mais nem menos, e comer as suas cenouras. Coma essas que estão à sua frente, e comporte-se, meu querido.

            Neste momento, apareceu na frente do coelho uma tigela com lindas cenouras, e o coelho foi logo experimentando uma para ver se realmente era verdadeira.

Uma ovelha disse agressiva:

-Lobo, este pasto está uma porcaria. Olha o tamanho do capim! - e logo o capim cresceu sem que o lobo precisasse dizer uma palavra. A galinha queria milho e minhoca, e logo foi atendida. Até o Sr. Freitas, aproveitando da generosidade do lobo, pediu uma casa nova para o sítio, com antena parabólica e piscina.

O tempo foi passando e os animais foram perdendo completamente o medo que sentiam do lobo, e passaram a agredi-lo. Se em algum lugar do pasto a grama amarelasse, um pouquinho que fosse, uma ovelha ia lá, pegava o lobo pela orelha e o trazia para mostrar, arrastando o seu focinho na grama para que ele, imediatamente, a fizesse ficar verde novamente. Quando a TV saía do ar, mesmo que o problema fosse da rede de transmissão, lá ia o Sr. Freitas com o seu chicote - coisa que o lobo mesmo fizera aparecer na sua mão - procurar o lobo para consertar. Ninguém demonstrava gratidão pelos serviços prestados pelo lobo, e se acostumaram tanto com as benesses proporcionadas pelo lobo que ele já nem tinha tempo de dormir.

Quando alguns animais, os mais espertos, começaram a usar o lobo para conseguir vantagens sobre os outros, provocando uma brigalhada sem precedentes na história do Sítio do Lago Claro, a fada voltou a aparecer. Bateu novamente a varinha nas costas do lobo e disse, sem que ele ouvisse:

-Infelizmente eu errei. Você vai voltar a ser mau para que os outros animais voltem a serem bons.

O lobo não sentiu nada e só viu umas estrelinhas coloridas à sua volta.
Assim que as estrelinhas sumiram, ele avançou sobre a fada, que desapareceu como fumaça.

Então ele, sorrateiro, tomou os rumos do sítio, escondendo-se entre as folhagens para não ser visto. Estava com muita fome e não se lembrava de nada do que havia acontecido.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

 

Devaneio

Ele ficou olhando para a tela do computador por alguns minutos, e sem o que dizer, escreveu sobre um cachorro manco que não conseguia urinar no poste e foi inchando, inchando, até estourar de tanta urina. Depois escreveu sobre a calça no varal, balançando de um lado para o outro, e o gatinho branco tentando alcançá-la, até conseguir e ficar com a pata presa, desesperado, tentando se desvencilhar, e o vento batendo, e o gato lá embaixo, tentando, tentando. Escreveu sobre a mulher que todos os dias passava pelos seus pensamentos, com aquela saia engomada e aquela blusa cor de vinho manchada de azul.

Sobre o baloeiro escreveu também, sentado na praça, sem ao menos saber que estava ali, pernas cruzadas, uma das mãos apoiada no banco de mármore, segurando os balões, e a outra cofiando a barba grisalha. Escreveu sobre os barulhos da praça, da pipoca estourando no carrinho, lá na esquina, e o cheiro chegando cá perto do banco do baloeiro, Escreveu também sobre os meninos saindo da escola, jogando as mochilas para cima, chutando uns aos outros, as beatas enroladas nos seus véus pretos indo para a missa que só começaria ao anoitecer.

Escreveu sobre os pombos cometendo o pecado mortal de cagar na igreja, sem contar o pecado que não tem classificação no livro das coisa ruins do céu que é o da prática do ato sexual no caibro da entrada principal da igreja, mas logo foi se desinteressando por aquilo tudo e desligou o computador sem salvar o texto.

domingo, 3 de setembro de 2023

 

A linha

Foi numa época, quando eu me encontrava no auge da lucidez, e as pessoas, talvez por não me entenderem, me tratando com desdém, que eu descobri que o raciocínio tem uma linha. Sabia o que era, mas não sabia explicar.

O raciocínio tem uma linha. Você vai seguindo aquela linha, de repente, sai dali e pega outro caminho, deixando para voltar depois, e desse caminho você vai para outro, para outro, para vários outros, e depois volta para a linha principal. Foi nessa época também que eu comecei a não admitir que as pessoas saíssem da linha principal e conversassem comigo fazendo de uma linha secundária qualquer a principal. Eu as entendia perfeitamente na linha principal, por que, então, a secundária?

Para tentar me organizar passei a escrever sobre a linha principal e as secundárias. Escrevia até caminhando pela rua, e ia deixando as folhas para trás. Queria entender o raciocínio e queria também que o raciocínio e as pessoas entendessem a minha lógica.

É claro que ninguém entendeu nada, e como sempre acontece, as pessoas resolveram me ajudar, como se eu, e não elas, precisasse de ajuda. Minha fragilidade não permitiu que eu reagisse, e hoje, depois de muito tempo internado, já aceito docilmente que as pessoas passeiem livremente pelas linhas do meu raciocínio.