sábado, 1 de fevereiro de 2025

 

Os sinos tocaram em vão

            Os sinos tocaram em vão, e ninguém foi capaz de ouvi-los, pois a lua sumiu no céu e todos se ocuparam da sua ausência.

            Era um presságio, diziam alguns. Era o fim do mundo, diziam outros. O padre ficou indignado. É apenas um eclipse, ele dizia.  Os pombos acordaram assustados e, sem entender a confusão, passaram a fazer sexo nas colunas da entrada principal da Catedral. Só o mendigo louco, que olhava sorrindo para os pombos, entendeu que naquele momento o melhor a fazer era o que eles faziam nas colunas da entrada principal da Catedral.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

 

Espelho

            Um espelho, numa casa vazia, reflete monotonia, até quando uma mosca inicia suas inspeções costumeiras, fazendo movimento nos dois compartimentos.

sábado, 25 de janeiro de 2025

 

Pesca esportiva

            Na pesca esportiva se devolve o peixe ao mar. Atitude nobre, pois aquela pesca é só brincadeira. Não vamos matar os pobrezinhos. Vamos apenas furar os seus olhos, ao tirar os anzóis, antes de jogá-los novamente no mar.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

 

Nádegas

            As nádegas são mais solenes do que as bundas. Determinaram que bunda é vulgar e nádega, não. Há mulheres que não têm bunda, têm nádegas. O que elas têm não tem volume, não tem o poder de encantar a libido dos homens. A função verdadeira da bunda é a de proporcionar à sua proprietária mais conforto ao sentar-se. E só!  Mas os homens têm grande interesse nelas.

            A nádega não encanta, é só a falta de bunda, que se apropriou de um nome pomposo que pode ser dito em solenidades. 

sábado, 18 de janeiro de 2025

 

            O casal era um. Tinham afinidades intelectuais, corriqueiras, afetivas, sexuais, e viviam num Olimpo. Isso é importante dizer: viviam num Olimpo e ninguém os afetavam.

            Isso durou muito tempo, por muitos anos, mas cumplicidade, felicidade, alegria, nunca são eternos. Estão sempre se reciclando, mostrando-nos a que viemos, mostrando-nos que se vivermos eternamente num paraíso, não evoluiremos, não alcançaremos os níveis mais elevados, não acumularemos riquezas e objetos como todos fazem.

            Então toda a cumplicidade que o casal alcançou por mérito próprio, por terem sensibilidade e disposição para a felicidade, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme a inveja, o egoísmo, e agora seus filhos, já casados, vivem num olimpo e ninguém é capaz de afetá-los.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

 

Nunca mais

            Eu ia escrever sobre o urubu. Estava com tudo já definido dentro da cabeça e não anotei. Perdi o texto. Eu acho que ia dizer que o urubu, apesar de toda a repugnância que nos transmite, causa grande admiração à urubua e aos urubinhos. Era tudo diferente e muito poético. Perdi o texto. Nunca mais.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

 

Um dos dois há de vencer

            Uma abelha entrou pela janela. Eu soprei, ela saiu. Entrou novamente. Eu soprei, ela saiu. Voltou determinada. Eu soprei, não adiantou. Eu peguei umas folhas de jornal. Ia estraçalhá-la. Ela saiu.

            Nessa hora não existe mel, fecundação das plantas, beleza da fauna. Nessa hora prevalece o desejo de não ser incomodada e o desejo de não ser picado. Um dos dois há de vencer a batalha.

domingo, 5 de janeiro de 2025

 

O mundo girando

            Um dia nascendo, sem nada de novo. Um homem morrendo, matando o seu povo. Uma chuva forte, um sol que atrapalha. Um grito de morte, possessão que valha. Um momento alegre passa sem se ver, pra uma vida breve, temos que nascer. Um dedo indicando qualquer coisa errada, um sábio chorando por não saber nada. Um burro pastando, um rato a roer. Um boi ruminando pra poder viver. E o mundo girando, querendo girar. E a gente passando, sem querer passar.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

 

O dique

O dique transbordou, despejando sobre os seus pés a lama que ele acumulara durante todos esses anos.

Na clínica, após o procedimento, ele não tinha consciência do que realmente acontecera, mas as pessoas que cuidaram dele lhe disseram que o processo foi longo e dolorido.

Como ele não se lembrava de dor e sofrimento, logo iniciou um novo processo de acumulação de lama, e permanecerá assim até que o dique transborde novamente.

É na lama que ele consegue se situar melhor.

domingo, 22 de dezembro de 2024

 

A massa enlatada

         Sou uma massa enlatada. Cérebro, alma, vísceras, defeitos, tudo espremido lá dentro. Os demônios estão na lata. Quero sair noite adentro, preciso me libertar.

         Preciso de um abridor de latas.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

 

Voar como os pássaros

            Iniciei uma jornada com o vento. Ele me levava para um lado, eu insistia em ir para o outro. Ele me puxava, eu resistia. Ele faltava e eu, desesperado, tentava permanecer lá em cima. Depois eu mergulhava e ele deixava. Logo eu me aprumava e nós experimentávamos, por alguns instantes, a paz. Ao entardecer, eu tomava a linha, guardava a pipa e despassarinhava para a noite chegar.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

 

Universo em construçãoUniverso em construção

            As oportunidades estão aí para serem abraçadas. Uns abraçam poder, objetos, condição. Eu abraço o inexistente, e faço dele um universo em construção.

            

domingo, 8 de dezembro de 2024

 


Minhocas na cabeça

            Ando com minhocas na cabeça. Elas revolvem lá dentro as cores e as palavras. De repente, jorram palavras soltas que eu desarrumo para não ter dúvidas. Jorram também cores, que eu espremo, umas com as outras, dando-lhes disfunção acadêmica. As minhocas me ajudam a brincar com a lógica e dar desimportância às coisas sérias da vida.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

 

Mundo bobo

            Vivemos num mundo bobo. As necessidades superam o observar, o sentir, o prazer. Eu concreto, não abstraio. Eu realinho, não voo. Eu fabrico, não arto. Eu ignoro, não sinto. Eu balelo, não poemo. Eu canso.



sábado, 30 de novembro de 2024

 

Agora que sou mais novo

            Quando eu era mais velho, e bem responsável, tudo funcionava de acordo com os padrões de funcionalidade. Vento era vento e pronto. O vento não lambia a copa das árvores, nem deixava que uma borboleta se debruçasse sobre as suas asas para cumprir o seu processo de migração.

            Eu era de pedra e não sabia, porque pedra, nessa época, era apenas um mineral sólido. Ela não enchia os vazios dos calangos.

            Agora que sou mais novo, eu não deserto mais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

 

Comida de lagarto

            O louva-a-deus, na copa da árvore, suplicava carinho, atenção. O lagarto subiu na árvore. Suplicava comida. De uma linguada trouxe o louva-a-deus para dentro da sua boca, e ficou, por alguns instantes, com aquele volume forçando-lhe as bochechas. Só as mãos postas do louva-a-deus ficaram pra fora.

            Suas preces não foram atendidas.

sábado, 23 de novembro de 2024

 

Eu só fui piorando

            Aquele senhor meio louco, que andava a conversar com pedras e tentava compartilhar com as coisas do chão o cheiro do mar, era eu. Todos, em vão, tentaram me consertar. Eu só fui piorando, e hoje, monto na ventania e saio a passear pela noite chuvosa.

            Eles dizem que isso é pior do que ver televisão.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 

As sete notas musicais

            As sete notas musicais libertam-se do piano, misturando-se umas com as outras,  transformam o silêncio em deslumbre chopiniano.

sábado, 16 de novembro de 2024

 

A inexistência do amor

            Na minha vida não existia o amor. Quando ele chegou, trazendo o desejo, a incerteza, o desespero, a alegria, tudo ao mesmo tempo, eu até senti saudades da sua beleza, quando ele não existia, mas não demorou muito e logo tudo isso impulsionou o tremular das asas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

 

Meio termo

            A noção de ridículo priva o homem de exercer toda a sua liberdade. A falta dela transforma o homem no idiota da aldeia. Há de se considerar um meio-termo.