Chuvas diferentes
a chuva da cidade multiplica os carros, entope bueiros, derruba árvores.
A chuva do campo abaixa a poeira, transforma pingos em deslumbrantes
gotas de cristal, e, quando passa, chama as borboletas para brincar
de roda com o sol.
Chuvas diferentes
O agora vazio
Mulher
bonita
A mulher bonita é sol, lua, noite
estrelada, solidão.
A mulher bonita ama, se arruma, banha-se
em jasmim, ilusão.
A mulheres bonita são bonitas por
terem nascido assim, quinhão.
Sua beleza silencia, constrange,
imbeciliza, admiração.
E as feias, que se acham bonitas,
conseguem se igualar a elas na imaginação.
0 seu passado condena
Quando você começa a desprezar os jovens, pode saber que toda a juventude que existia aí se esvaiu. Você ficou velho e não se lembra ou não quer se lembrar de todas as inconsequências da sua juventude. É nesse momento que você, um sujeito perfeito, sem mácula na sua honradez, segura esse quinhão, como se os jovens de agora fossem diferentes dos jovens de outrora. O seu passado condena.
A galinha ideal
Olha,
Deus que me perdoe por dizer isso, mas com toda a perfeição da Sua criação, eu
acho que a galinha deveria dar o ovo, a carne e o leite. Seria maravilhoso ir
ao quintal ao amanhecer e ordenhar a galinha para complementar a mesa do café
da manhã. Isso, além de ser muito mais prático, nos livraria da flatulência das
vacas, que causam grandes transtornos, como o efeito estufa e o aquecimento
global.
Palavras
Às vezes algumas palavras que me vêm
à mente, conforme o meu ponto de vista, não estão de acordo com o seu
significado. São palavras, frases, nomes
próprios, que ficam incomodando o inconsciente. Claro que algumas têm o sentido
semelhante, e muitas dela um sentido completamente diferente:
Buraco
sem volta
A tendência é de que a idiotização da humanidade venha a piorar ainda mais, como vem piorando através dos séculos. A tecnologia, os meios de comunicação, usados com sabedoria, são muito eficientes para ajudar o homem na sua jornada, como na medicina, na agricultura, mas a internet, com todo o seu poder de comunicação, veio para normalizar a vulgaridade e a estupidez, e sem sombra de dúvidas está levando a humanidade para um buraco sem volta.
A Lua
A Lua virou cachorra. Já não tem dentes, não enxerga, nem ouve. Quando aponta no corredor, parece um bichinho de corda. Seu contato com o mundo se dá através do tato e do olfato. Ao perceber carinho, abana lentamente o rabo, apoia a cabeça sobre a minha perna, fecha os olhos e volta a encantar o céu.
O
suicida
Se você for se suicidar, escolha um dia nublado, já que exercerás um ato lúgubre. Não escolha um dia de sol, onde os pássaros cantam e as crianças brincam no parquinho. Não incomode os transeuntes, caindo de um prédio como um saco de farinha. Tenha dignidade na hora da morte. Se possível seja reservado: esfaqueie o seu pescoço no banheiro e se esforce para não emitir gemidos.
Os
sapatos
Finalmente ele deitou com os sapatos. Era tão limpo, tão higiênico, nunca imaginou que um dia o colocariam ali deitado, de mãos postas, cheio de flores ao redor, e os sapatos emergindo entre rosas, crisântemos, margaridas e copos-de-leite. Nesse momento ele ainda carregava, na sola dos calçados, as manchas das sujeiras da cidade
O rol
dos que não queriam e não foram
Bom
senso e senso comum
Os
relógios
O diabo e o bom Deus
O diabo saiu de cena. Ninguém mais o teme como antigamente. Hoje todos temem a Deus, como se Ele fosse vingativo e mau. Se Ele é todo amor, jamais castigará alguém. O diabo, aproveitando dessa mudança de foco, foi para os púlpitos disseminar o preconceito, o ódio, o medo, a descriminação.
Benesses
Fantasmas
pelados
Brincos
de ouro
Brincos de ouro enfeitam orelhas perecíveis. Orelhas perecíveis mutilam-se para suportar brincos de ouro. No fim as orelhas enfeitam o caixão. Os brincos de ouro ficam guardados. As orelhas, sem os brincos, dão sentido anatômico ao rosto do morto. Quem perde um brinco de ouro se desespera. Quem perde a cabeça vai preso.
Começar
de novo
O mundo está tão incompreensível que eu sempre coloco minhas observações negativas a respeito. Um dia, se algum sobrevivente achar essas observações boiando dentro de uma garrafa em um mar revolto, pode me achar pessimista, porque, quem conseguir sobreviver à grande catástrofe que está por vir, terá uma fase gloriosa, até se esquecer de todo o infortúnio e começar todo o processo de destruição novamente.
Ponto
de vista
O
intruso
O
princípio e o fim
Éramos
eu e aminha mulher. Tínhamos afinidades intelectuais, afetivas, corriqueiras,
sexuais, e vivíamos no Olimpo. Isso é importante dizer: vivíamos no Olimpo e
ninguém seria capaz de nos afetar. Isso durou por muito tempo, muitos anos, mas
cumplicidade, felicidade e alegria não são eternas, e um casal tem que se
reciclar. Se viverem eternamente num paraíso não evoluirão, não alcançarão os
níveis mais elevados, não acumularão riquezas e objetos como todos fazem.
Então
tudo que alcançamos por mérito próprio, por termos sensibilidade e disposição
para o belo, o amor, terminou em uma grande confusão, onde imperou o ódio, o ciúme,
a inveja, e nós, de braços dados com o egoísmo e a mentira, finalmente
conseguimos nos tornar o que todos são.
Conceito e lama
Atento às insignificâncias, me desprendi do conchavo com as aparências e me joguei, viajando por bilhões de anos luz, sempre observando conceitos espúrios, e quando voltei, enlameado daquilo tudo, consegui entender que, conceito e lama andam de braços dados, e que conchavo e aparência nos transformam naquilo que os outros querem que a gente seja.
Perdemos o perônio
O
Amolador
Não quero amolação. Ninguém quer. Eu amolo às vezes, sem perceber que estou amolando. Só depois, quando a coisa passa, e eu consigo relaxar, é que percebo. Aí já amolei, como um amolador amola uma faca ou um tesoura. Ele mutila alguns objetos para dar excelência no resultado de seus usos. O amolador nunca percebe que está amolando uma faca, mas a faca percebe, pois, apesar de ficar brilhante e com um corte magnifico, perdeu alguns gramas do seu peso. Com o tempo ela vai afinando, afinando. Isso não é bom. Mas a faca também amola. Que o diga o porco, a galinha...
Não
pensar
O cisco
Tudo
tem o seu valor, até um cisco insignificante, principalmente se ele estiver
alojado no olho de uma pessoa. Ele pode leva-la ao hospital ou acabar com a
alegria de muita gente. Pode impossibilitar um presidente de pronunciar o seu
discurso, ou fazer com que um motorista encoste o seu carro no acostamento;
isso se ele já não tiver causado um grande acidente. O cisco tem seu valor. Um
cisco tem sua importância. Eu sou um cisco. Talvez o cisco do cisco, se
comparado à grandeza do universo.
A terra é um cisco, e eu, na terra, sou insignificante. É tão difícil aceitar a nossa insignificância, mas com o passar do tempo você vai virando um cisco verdadeiro, um cisco com significado, daqueles que exigem e incomodam: o verdadeiro cisco no olho.