As sete notas musicais
As sete notas musicais libertam-se
do piano, misturando-se umas com as outras, transformam o silêncio em
deslumbre chopiniano.
Protesto
Preciso escrever sobre coisas, sobre casos, sobremaneira, sobretudo, sobremesa, sobressalente. Preciso abrir as asas e voar para bem longe dos meus pés, dos meus dentes, do meu olfato. Preciso sair correndo, correndo sem estar fuginfo, correndo para encontrar a iluminação intelectual que me falta. Tenho que sair da bolha escura, dizer boceta sem autocrítica, sem achar que estou sendo vulgar, banal, pornográfico. Preciso achar o caminho das pedras sobre as águas do rio, sem que ninguém perceba o engodo. Preciso dizer puta que pariu em voz alta, escrever em voz alta, ouvir a minha voz alta no pensamento ao escrever filho da puta. Eu não cuspo nos desafetos. Já não existem mais jornais para cuspir na foto deles como fazia o meu sogro, um grande jornalista reacionário mineiro, que participou e documentou a política nacional desde a época da ditadura de Getúlio Vargas, seu amigo.
Mas
para quem quer fugir eu estou voltando para detalhes insignificantes do
passado. Para quem quer sair daqui, alcançar a liberdade de outras linguagens,
eu estou voltando. Se eu estivesse no mato, estaria falando sobre o rio, o
vento, o sol. Se estivesse na praia falaria sobre a maresia implacável
corroendo tudo o que é de ferro, mas não! Eu estou na cidade, no centro dela.
Agora ouço uma sirene. Deve ser uma ambulância. Esse é o caminho para o Pronto-
Socorro. Eu estou no centro. Em frente à minha janela, do outro lado da rua,
estão construindo um prédio de 12 andares. Já tem janelas, vidros, lajotas
claras nas paredes e estão concluindo os jardins da entrada. Logo colocarão uma
cerca. Que seja uma grade para que não escureça a paisagem. Os pedreiros
martelam, os carros passam. Estou escrevendo como escrevia no Rio, na década de
70, quando reclamava da cidade, mas maravilhado de estar nela. O tempo
passou. Eu estou aqui em outra cidade, reclamando do mesmo jeito. Nada mudou.
Nada muda. Só que agora eu estou reclamando da minha falta de imaginação para
escrever, pintar, desenhar. A burrice da humanidade ao lidar com a natureza
está me afetando. Isso deveria me incentivar, não me destruir.
Pelo
menos eu tenho a cidade para culpar, mesmo que não seja ela.
Aparência
Eu pareço uma pessoa séria. Devido a esta aparência, todos me respeitam e eu dou grande valor a isto. Ninguém sabe quem sou eu. Esta aparência austera esconde uma certa insegurança. Eu jamais revelarei meus sentimentos mais íntimos. No fundo, atrás da aparência, está um homem comum, que se sensibiliza e chora, sem que ninguém perceba, ao assistir a um filme onde é negado um osso a um cachorrinho vira-lata.
A árvore do conhecimento
A árvore do conhecimento era a
macieira. Era proibido comer a fruta que ela nos proporcionava, apesar de ela
produzir uma fruta muito palatável. Nós preferimos o conhecimento à possibilidade
da vida eterna. Preferimos o conhecimento a ficarmos babando bestamente num
lugar maravilhoso, sem saber o que se passava ao nosso redor.
Foi daí que vieram os desejos
inalcançáveis, as futricas, a necessidade de ser mais, a inveja, mas tudo com
muita intensidade. E no meio de tudo isso eu já não sei o que seria melhor: viver
eternamente o gozo da alienação ou conviver com a burrice do mundo à nossa
volta.
Dívidas
Um grande feito não é não dever nada a ninguém,
e sim, não se preocupar com isto. Eu estou me referindo à dívidas porque hoje ouvi alguém
dizer essa frase: “Não devo nada a ninguém”.
Ninguém tem que se vanglorias por não dever nada a ninguém. Isso seria a regra: ninguém deveria dever nada para aos outros. Mas a vida não é assim. Todos devem, até os bancos, com seus juros e taxas mirabolantes nos devem, e eu, quando não estou devendo, me sinto tão seguro que logo adquiro uma nova dívida pra me sentir incluso na honrosa casta dos devedores.
O relógio
O relógio está sempre trabalhando,
sempre cumprindo a sua missão de determinar as horas. Trabalha como o pulsar
dos nossos corações.
Nós sentimos o coração batendo e às vezes
é assustador. Dá vontade de pegá-lo no colo, cuidar dele, que bate incansavelmente, sem trégua, há vários anos.
Só que o relógio está ali para determinar as horas, e nós, com nossos corações pulsantes, estamos sempre tentando nos livrar delas.
A fila anda
Os jornais
estão acabando. Daqui a pouco não serão mais publicados. O dinheiro, notas e
moedas – quem diria? – também estão. É difícil encontrar troco, pois a maioria
das transações são feitas de maneira virtual.
Daqui a
pouco o dinheiro, as bancas de jornais, os bancos, serão uma saudade, ou um
alívio, como nós nos sentimos aliviados com o fim das máquinas de datilografia,
os mata-borrões, os orelhões e as lanternas à pilha.
Tudo isso perdeu
a função prática, mas apesar do alívio, continuam tendo um lugar na nossa
afetividade.
Discutindo
a relação
Um casal vivia brigando por causa dos outro. Um dia eles resolveram pensar um pouco nos motivos dessas brigas e passaram a noite discutindo a relação. Ele dizia (sobre ele) que iria mudar, e que nunca mais iria mastigar apenas vinte e uma vezes ao dar uma garfada. Ela, vegetariana, gostou da promessa, e ele continuou dizendo (sobre os outros), que quando alguém insinuasse que ele estava sendo traído, não iria se importar, nem levaria essa negatividade para as discussões noturnas. Ela, por sua vez, disse (dela) que iria parar de se esfregar no almofadão da sala, deixaria de exigir que ele urinasse sentado para não sujar a tampa do vaso e nunca mais pediria roupa emprestada à mulher do seu amante.
Translado
O caixão, descendo no elevador, levava o defunto
aprumado. Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali; de terno, sapatos
engraxados, e aquelas flores querendo devorá-lo. Pareciam antecipar a função
dos germes.
Foram tantos anos sucumbindo até chegar ali, e naquele
momento, as flores, algumas já despedaçadas sobre o morto, de pé, dentro do
elevador, ainda procuravam a claridade.
O
morto, indiferente, seguia em frente, sem se importar com o fato de que logo
seria esquecido.
Carências
Um homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra, uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.
Não sejamos limitados, isso não é o fim
do mundo.
Um homem pode muito bem viver sem
dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não se interessará por dinheiro e
será muito mais inteligente.
Na falta de lixo os ratos poderiam limpar
as cidades dos vômitos dos indignados.
Os carrapatos podem procurar o cavalo em
vez de vaca, e as pulgas,
um gato.
Os vermes podem comer os mortos-vivos pelas
beiradas, e as minhocas, tentar a areia.
As abelhas, os restos de Coca-Cola
espalhados nas mesas de bar.
Os peixes podem procurar os aquários, e as
baleias os museus arqueológicos.
Para tudo há uma solução.
O meu nome
O meu nome é Nerino. Esse nome me
foi dado pelos meus pais. Suponhamos que eu já tenha vivido vidas passadas e
tenha tido, em cada uma delas, um nome: João, Lorenzo, Haruki, Cheng Hao, Maria
das Dores.
Todos os nomes que me foram dados têm a sua importância pelo empenho de alguém para escolhê-los, mas quando eu voltar lá para cima, entre uma vida e outra, gostaria de saber qual o meu verdadeiro nome, qual o nome que eu sou conhecido pelos meus camaradas do lá do céu.
Meu herói
Será que o
espermatozoide que me gerou teve que se esforçar, passar por cima de milhares
de outros até fecundar o óvulo? Ou por estar muito bem preparado fisicamente
chegou antes dos demais sem esforço?
Será que
se fosse outro espermatozoide qualquer, um dos milhares deles que tentaram fecundar
o óvulo eu seria essa pessoa que escreve, desenha, que tem essa aparência, que
pensa e age de uma forma única, diferente da forma única de todos os demais?
Se for assim, se qualquer um daqueles milhares pudessem me gerar do jeito que eu sou, o meu espermatozoide gerador, o meu herói desde os tempos das aulas de biologia no científico perde completamente a importância, mas os outros adquirem o status de heróis, e qualquer uma deles poderiam ter ajudado a gerar esse grande camarada chamado Nerino.
Os de baixo
Nós somo
governados por uma pequena aristocracia. São os donos do nosso destino. Eles
determinam o que vamos vestir, comer, onde trabalhar, definem o soldo reservado
a cada um de nós, o governo que somos obrigado a aturar e as notícias, sempre
exaltando-os subliminarmente.
Muitos de
nós, “os de baixo”, sentem-se como aristocratas, agem como aristocratas, sem
dar importância para os seus pares, “os de baixo”.
Essa
atitude dos “muitos de nós” não incomodam os aristocratas, que se utilizam
dessa conduta sonhadora para se fortalecerem.
No tempo
das cavernas, certamente o aristocrata seria o macho dominante, o mais forte, o
primeiro a se alimentar de carne crua e das mulheres do bando.
Hoje os
aristocratas não aparecem muito. Vivem usufruindo dos frutos colhidos por nós,
“os de baixo”.
A verdade é que nós, através dos séculos, continuamos na ilusão de que um dia possamos alcançar a glória de sermos aristocratas.
Os órgãos
A vagina é um órgão do sistema reprodutor feminino, como o pênis é o do masculino. Eles se entendem quando os seus portadores estão se entendendo. Às vezes esses portadores não estão se entendendo, estão até se odiando, circunstâncias da vida, mas depois de um certo tempo a vagina ou o pênis, ou os dois juntos sentem um grande prazer. O prazer é uma sensação agradável, uma emoção, um estado de satisfação plena. Logo os dois órgão se libertam um do outro. O pênis sente uma grande necessidade de se prostrar, descansar, e a vagina, nem tanto. Ela está sempre querendo continuar, causando um grande desconforto ao portador do pênis.
Carências
Um
homem sem dinheiro, um carrapato sem vaca, uma pulga sem cachorro, um rato sem
lixo, um verme sem cadáver, uma planta aquática sem lago, uma minhoca sem terra,
uma abelha sem flor, um peixe sem rio, uma baleia sem mar.
Não
sejamos limitados, isso não é o fim do mundo.
Um
homem pode muito bem viver sem dinheiro. Troque de lugar com a coruja. Você não
se interesserá por dinheiro e será muito mais inteligente.
Na
falta de lixo os ratos poderiam limpar as cidades dos vômitos dos indigndos.
Os
carrapatos podem procurar o cavalo em vez de vaca, e as pulgas, um gato.
Os
vermes podem comer os mortos-vivos pelas beiradas, e as minhocas, tentar a
areia.
As
abelhas, os restos de Coca-Cola espalhados nas mesas de bar.
Os
peixes podem procurar os aquários, e as baleias os museus arqueológicos.
Para tudo há uma solução.
Sono
Estou escrevendo, há várias horas, na lanchonete do
Palácio das Artes. Estou cansado e com muito sono, mas vou continuar:
“Um dia incontido, contanto que se conte o conto. Isso
não conta neste cubículo calculado pelo pelo do paletó de pelúcia que pegou um pé
de poeira e poluiu piolhos.”
O olho fecha, a voz retumba na cabeça e o couro cabeludo continua intacto. Vou abaixar a cabeça em cima de uma folha e dormir, até que a dormência do braço me acorde para mandar-me para casa, onde dormirei na minha cama, lençóis cheirando à lavanderia, assoalhos brilhantes, reluzente, cortinas fechadas, abajur à meia luz, e nem um pernilongo para atrapalhar a paz. Obrigado!!!
O desespero dos gansos
Estou
sentado no parque. Chove. As árvores choram a falta do sol. Os gansos saíram do
lago. Estão perfilados no gramado do teatro. Uma criança passa com a mãe. Cada
um carrega um guarda-chuva. A criança parou para ver os gansos, que também
choram a presença daquela criança estúpida, que logo os espantarão dali, entre
gritos e pontapés.
Palavras e significados
Caneta preta, caneta grossa, caneta azul, caneta fina.
Lapiseira de ponta fina, lapiseira de ponta grossa, teclado, tudo serve,
contanto que as ideias cheguem. Palavras, prismas, produtos, prosperidade,
prospectos, prazer. Cada palavra com o seu sentido. Cada palavra com seu
significado:
INSÍGNIA: Condecoração que se dá a mortos-vivos.
ESTABILIDADE: posição alcançada quando você já perdeu o
entusiasmo para viver.
JUÍZO: Uma conquista pós-adolescência que o torna um chato.
JULGAR: Deliberar, na condição de juiz, coisas ou pessoas
como se estivéssemos sentenciando, na condição de juiz, a nós mesmos.
REORGANIZAR: Bagunçar tudo de novo.
INSINUAR: Fingir que você não disse alguma coisa, quando realmente você não disse.
Vento e solidão
Uma mosca sobrevoou o meu copo. Eu soprei. Ela voou sem rumo. O vento que eu utilizei não era meu. Eu apenas emprestei o meu corpo para a execução. O vento entrou, eu forcei os meus músculos para expulsá-lo e a mosca se foi. Isso há muito tempo, e agora, nem a mosca eu tenho para amainar a minha solidão.
Outras paisagens
Quinta feira. Eu sentado sozinho à uma mesa. Bar cheio, quase todos acompanhados. À minha frente, em uma mesa com umas 15 pessoas, uma linda loura, parecida, mas muito mais bonita do que uma linda loura que eu conheço. Eu não tinha para onde olhar e acabava sempre olhando para ela. Ela conversava de uma maneira muito agressiva, e por não ter para onde olhar, acabava olhando para mim. Nós dois nos olhávamos apenas por estarmos de frente um para o outro. A sua agressividade tirava todo o seu encanto. Então eu continuei no bar, mas sentei na cadeira ao lado para apreciar outras paisagens.
Irmãos
São
Francisco de Assis dizia que nós e os animais somos todos irmãos. O irmão Leão,
a irmã Girafa, o irmão Tigre, o irmão Urso, as irmãs corujas, todos irmãos.
Até
aí aceita-se esses animais vigorosos sem preconceito, mas na lógica
preconceituosa do ser humano, logo a coisa muda. Então vêm os irmãos de uma
casta mais baixa. São os agregados, os irmãos de criação, como o macaco, a hiena, o bicho preguiça, o porco.
Mas existem outros irmãos que sofrem de preconceito como os judeus sofreram na segunda guerra, os palestinos sofrem isolados no seu canto e os negros sofreram e sofrem até hoje. São as irmãs baratas, os irmãos morcegos, os irmãos gambás e os irmão germes, estes últimos, que apesar de limparem a terra dos nossos restos, são também vitimas dos preconceitos mais crueis.
O chato
Há dias em que você não quer ver
ninguém, e justamente nesses dias os chatos resolvem telefonar ou aparecer.
Você vai, pé-ante-pé, e constata, através do olho mágico, que é o chato!
Enquanto você está pensando se vai ou não abrir a porta, o telefone toca. O
telefone tem que ser atendido, pois pode ser alguma coisa grave. Você fica sem
saber se continua a observar no olho mágico ou se vai atender, e meio
desesperado, diz em voz alta: “espera ai um momentinho”. Corre para o telefone
e diz: “espera ai um momentinho”. Volta correndo, abre a porta e antes mesmo de
dizer que vai atender o telefone, o chato te abraça e te cospe todo, dizendo
que você está ótimo. Quando você finalmente tenta dizer que vai atender o
telefone ele diz que acabou de vir do cinema, e, pegando no seu braço, começa a
contar o filme aos berros, acordando a sua filhinha recém-nascida. A filha chora e o chato continua contando o
filme até você se lembrar de que o telefone está para ser atendido, e quando
corre para atendê-lo, se depara com um outro chato que, quando para de falar, o
chato cinematográfico, desistindo de esperar, já partira sem se despedir.
Aí você vai para o quarto, tentar ajudar a sua mulher a cuidar da filhinha chorona.
Bola de sabão
No emaranhado de imagens maquio a minha solidão. Às vezes o esforço para criar a imagem perfeita é desgastante, e quando ela aparece, em sua plenitude, tudo se transforma em realidade, e a solidão, mesmo sabendo que está sendo enganada, retira-se por alguns instantes, até que a imagem estoure, desaparecendo como uma bola de sabão.
Escrever
Eu gostaria de ficar escrevendo o tempo todo. Eu gosto de
escrever e não gosto de falar. Eu não consigo falar, principalmente se todos
quiserem me ouvir. Escrevendo, eu consigo me comunicar com várias pessoas ao
mesmo tempo, e apesar de elas não estarem lendo os meus textos no momento em
que escrevo, existe uma possibilidade de que um dia todos leiam, e dessa forma
eu me sinta bem. Esse é o desejo de todo escritor.
Escrever é bom, é
particular, é criativo, é sensacional, e você que escreve pode ser um chorão,
reclamar da vida, pode ser verdadeiro, mentiroso, poético ou escandaloso. E o
principal: você pode ser você mesmo.
Escrever é uma aventura.